Crônica | Parêntese

José Falero: O abraço

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José Falero: O abraço Vi degringolar aos poucos a vida de um certo homem. Pouco importa quem era, pouco importa a natureza da sua desgraça. Talvez nada importe, no fim das contas. Mas vi degringolar aos poucos a sua vida. Testemunhei tudo a uma distância segura: nem longe o bastante para rir, nem perto o suficiente para chorar. Dinheiro não lhe faltava, porque tinha uma pensão, acho que por invalidez. Mas lhe faltava, sim, algo: aquilo que nem os maiores filósofos puderam nomear adequadamente, aquilo que nem as maiores fortunas poderiam pagar. Lhe faltava o tesouro anônimo que todos trazemos de fábrica, e que alguns acabam perdendo pelo meio do caminho, no safári da vida. Mudou-se, isolou-se, resignou-se. Não sei o que pretendia. Desconfio mesmo que não pretendesse mais nada. À espera da morte, pagava o aluguel do quartinho em que vivia e gastava o restante da pensão em cachaça e bolacha água-e-sal. Fazia carinho nos cachorros como se pedisse perdão a Deus. Depois que mudou-se, as notícias a seu respeito tornaram-se cada vez mais tristes, porém cada vez mais raras. E, francamente, eu queria mais era que ele caísse em completo esquecimento; não por lhe guardar algum rancor, pois a mim nunca tinha dado motivo para tanto, mas por acreditar que qualquer frase contendo o seu nome não poderia inspirar bons sentimentos em quem quer que fosse. Por essa época, meu coração andava agitado, a ponto de explodir. Foi o auge da minha ingenuidade e da minha alegria. Foram os meus tempos mágicos. Descortinava-se diante de mim toda a vida, bela e brilhante, sem qualquer ameaça, e com uma promessa de encanto em particular: um presente pelo qual eu agradecia toda noite, antes de dormir, e toda manhã, após despertar. Creio que todos tenham passado por isso em algum momento. Creio que todos tenham vivido seus tempos mágicos. Creio que todos, em algum momento, mal tenham podido crer na maravilha que possuíam em mãos, em olhos, em ouvidos, em boca, em mente, em coração. Isso me poupa do trabalho, e do vexame, de ser mais específico sobre o meu próprio caso. De alguma forma, o leitor há de entender o que digo; há de guardar com carinho, na lembrança, alguma felicidade sem medidas; e há de saber que jamais experimentará coisa parecida, por já não ser mais capaz de entregar-se ao doce como criança. Não passava de uma armadilha.Mas acho que tudo é assim.Toda estrela brilhante deve conduzir a algum abismo. Às vezes, tudo de que precisamos é um lugar onde possamos chorar em paz. Onde não nos perguntem o que foi que aconteceu. Onde possamos exercer o direito de pensar em desistir de tudo sem que venham nos importunar com discursos otimistas. Procurei aquele homem. Ignorei o fato de que procurá-lo pareceria uma esquisitice de qualquer ângulo possível e o procurei. Procurei-o porque ele era a pessoa mais infeliz que eu conhecia. Procurei-o porque ele não teria moral para rir da minha desgraça. Procurei-o porque ele não teria conselhos a me oferecer. […]

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Vi degringolar aos poucos a vida de um certo homem. Pouco importa quem era, pouco importa a natureza da sua desgraça. Talvez nada importe, no fim das contas. Mas vi degringolar aos poucos a sua vida. Testemunhei tudo a uma distância segura: nem longe o bastante para rir, nem perto o suficiente para chorar. Dinheiro não lhe faltava, porque tinha uma pensão, acho que por invalidez. Mas lhe faltava, sim, algo: aquilo que nem os maiores filósofos puderam nomear adequadamente, aquilo que nem as maiores fortunas poderiam pagar. Lhe faltava o tesouro anônimo que todos trazemos de fábrica, e que alguns acabam perdendo pelo meio do caminho, no safári da vida. Mudou-se, isolou-se, resignou-se. Não sei o que pretendia. Desconfio mesmo que não pretendesse mais nada. À espera da morte, pagava o aluguel do quartinho em que vivia e gastava o restante da pensão em cachaça e bolacha água-e-sal. Fazia carinho nos cachorros como se pedisse perdão a Deus. Depois que mudou-se, as notícias a seu respeito tornaram-se cada vez mais tristes, porém cada vez mais raras. E, francamente, eu queria mais era que ele caísse em completo esquecimento; não por lhe guardar algum rancor, pois a mim nunca tinha dado motivo para tanto, mas por acreditar que qualquer frase contendo o seu nome não poderia inspirar bons sentimentos em quem quer que fosse. Por essa época, meu coração andava agitado, a ponto de explodir. Foi o auge da minha ingenuidade e da minha alegria. Foram os meus tempos mágicos. Descortinava-se diante de mim toda a vida, bela e brilhante, sem qualquer ameaça, e com uma promessa de encanto em particular: um presente pelo qual eu agradecia toda noite, antes de dormir, e toda manhã, após despertar. Creio que todos tenham passado por isso em algum momento. Creio que todos tenham vivido seus tempos mágicos. Creio que todos, em algum momento, mal tenham podido crer na maravilha que possuíam em mãos, em olhos, em ouvidos, em boca, em mente, em coração. Isso me poupa do trabalho, e do vexame, de ser mais específico sobre o meu próprio caso. De alguma forma, o leitor há de entender o que digo; há de guardar com carinho, na lembrança, alguma felicidade sem medidas; e há de saber que jamais experimentará coisa parecida, por já não ser mais capaz de entregar-se ao doce como criança. Não passava de uma armadilha.Mas acho que tudo é assim.Toda estrela brilhante deve conduzir a algum abismo. Às vezes, tudo de que precisamos é um lugar onde possamos chorar em paz. Onde não nos perguntem o que foi que aconteceu. Onde possamos exercer o direito de pensar em desistir de tudo sem que venham nos importunar com discursos otimistas. Procurei aquele homem. Ignorei o fato de que procurá-lo pareceria uma esquisitice de qualquer ângulo possível e o procurei. Procurei-o porque ele era a pessoa mais infeliz que eu conhecia. Procurei-o porque ele não teria moral para rir da minha desgraça. Procurei-o porque ele não teria conselhos a me oferecer. […]

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