Ensaio | Parêntese

Julieta Jerusalinsky: Psicopatologia na quarentena

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Julieta Jerusalinsky: Psicopatologia na quarentena Antes de que, em plena pandemia de Covid-19, as pessoas saiam chamando os outros de “histéricos”,  se classificando como ansiosas, depressivas ou hiperativas, pondo nomes de “transtornos” aos escoadouros que a angústia vai encontrando em cada um, vale a pena escutar as formações do inconsciente que vão se produzindo diante da descontinuidade que estamos vivendo. Quando as significações estabelecidas se desacomodam e perdem sua estabilidade – tais como sociedade, trabalho, convívio, casa, cuidado, aprendizagem -, é preciso reelaborar para poder estender o fio que tece o sentido do nosso viver. Se não fazemos isso, aí sim adoecemos psiquicamente, assim como uma sociedade também adoece se não recorda a sua história. Quando não se elabora os acontecimentos, se está condenado a repetir o pior. Por isso, em uma era em que as classificações de transtornos mentais do DSM passaram a definir as pessoas e, mais ainda, em que as pessoas procuram se autodefinir por categorias diagnósticas como outrora o fizeram com testes de revistas, é bom lembrar da psicopatologia da vida cotidiana que comumente habita em todos nós. Freud (1901) chamou desse modo os acontecimentos psíquicos que não dizem respeito apenas a grandes “doentes dos nervos”, mas que comparecem no dia a dia de qualquer cidadão, rompendo com a lógica racional. São eles os sonhos, os chistes e atos falhos que comparecem em meio à chamada “normalidade” e que bebem da mesma fonte que os mais graves sintomas: nosso inconsciente. Essas formações do inconsciente, em sua forma aparentemente nonsense, onírico e surrealista, comportam verdades e produzem respostas psíquicas diante do que nos afeta. Os adultos, assim como as crianças, sonham que lutam com monstros, que acordam em um lugar estranho, revelando as suas angústias diante desse acontecimento que os tomou de surpresa e lhes interrompe o sono, porque é difícil dormir quando não estamos minimamente tranquilos acerca da continuidade no amanhã. Mas também, ainda bem, se compartilham piadas, chistes que nos fazem rir por alguns instantes diante do peso do que testemunhamos. Em momentos em que a realidade se derrete, percebemos que ela é uma fina lâmina que depende da lógica simbólica com a qual sustentamos o nosso viver, na singularidade, mas também no coletivo. Por isso, “com os pés, de manhã, pisar o chão…”, esse pequeno ato prosaico cantado por Gil (em sua adaptação da música de Bob Marley, Não chore mais) revela o peso que recai sobre os ombros de cada um na hora de acordar e partir para o abraço com o princípio de realidade.  Essa realidade desencaixada com a qual precisamos conviver diariamente, buscando produzir transformações para que o mundo, tal como ele se apresenta, vá mais na direção do que sonhamos. E que trabalho isso dá… É por isso que os sonhos são produções singulares, que não podem ser interpretadas por um dicionário de sonhos ou decifrados por um chavão generalizante, mas não são individuais, estão perpassados pelo que se compartilha com aqueles com os quais convivemos e também pelo discurso social vigente em cada época […]

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Antes de que, em plena pandemia de Covid-19, as pessoas saiam chamando os outros de “histéricos”,  se classificando como ansiosas, depressivas ou hiperativas, pondo nomes de “transtornos” aos escoadouros que a angústia vai encontrando em cada um, vale a pena escutar as formações do inconsciente que vão se produzindo diante da descontinuidade que estamos vivendo. Quando as significações estabelecidas se desacomodam e perdem sua estabilidade – tais como sociedade, trabalho, convívio, casa, cuidado, aprendizagem -, é preciso reelaborar para poder estender o fio que tece o sentido do nosso viver. Se não fazemos isso, aí sim adoecemos psiquicamente, assim como uma sociedade também adoece se não recorda a sua história. Quando não se elabora os acontecimentos, se está condenado a repetir o pior. Por isso, em uma era em que as classificações de transtornos mentais do DSM passaram a definir as pessoas e, mais ainda, em que as pessoas procuram se autodefinir por categorias diagnósticas como outrora o fizeram com testes de revistas, é bom lembrar da psicopatologia da vida cotidiana que comumente habita em todos nós. Freud (1901) chamou desse modo os acontecimentos psíquicos que não dizem respeito apenas a grandes “doentes dos nervos”, mas que comparecem no dia a dia de qualquer cidadão, rompendo com a lógica racional. São eles os sonhos, os chistes e atos falhos que comparecem em meio à chamada “normalidade” e que bebem da mesma fonte que os mais graves sintomas: nosso inconsciente. Essas formações do inconsciente, em sua forma aparentemente nonsense, onírico e surrealista, comportam verdades e produzem respostas psíquicas diante do que nos afeta. Os adultos, assim como as crianças, sonham que lutam com monstros, que acordam em um lugar estranho, revelando as suas angústias diante desse acontecimento que os tomou de surpresa e lhes interrompe o sono, porque é difícil dormir quando não estamos minimamente tranquilos acerca da continuidade no amanhã. Mas também, ainda bem, se compartilham piadas, chistes que nos fazem rir por alguns instantes diante do peso do que testemunhamos. Em momentos em que a realidade se derrete, percebemos que ela é uma fina lâmina que depende da lógica simbólica com a qual sustentamos o nosso viver, na singularidade, mas também no coletivo. Por isso, “com os pés, de manhã, pisar o chão…”, esse pequeno ato prosaico cantado por Gil (em sua adaptação da música de Bob Marley, Não chore mais) revela o peso que recai sobre os ombros de cada um na hora de acordar e partir para o abraço com o princípio de realidade.  Essa realidade desencaixada com a qual precisamos conviver diariamente, buscando produzir transformações para que o mundo, tal como ele se apresenta, vá mais na direção do que sonhamos. E que trabalho isso dá… É por isso que os sonhos são produções singulares, que não podem ser interpretadas por um dicionário de sonhos ou decifrados por um chavão generalizante, mas não são individuais, estão perpassados pelo que se compartilha com aqueles com os quais convivemos e também pelo discurso social vigente em cada época […]

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