Juremir Machado da Silva

Por onde anda o Pleonasmo?

Change Size Text
Por onde anda o Pleonasmo? Foto: Amador Loureiro/Unsplash

Vi um cara na rua que me lembrou o Pleonasmo. Eu tive um colega de escola cujo apelido era Pleonasmo. Isso mesmo. Podem acreditar. Pleonasmo era ruim de futebol e sempre acabava no gol, menos quando teve a sua bola. Mas isso já é outra conversa. Havia todo tipo de alcunha naqueles tempos dolorosos, com laivos de felicidade, desde as mais comuns até as mais exóticas e cruéis: Quatro Olhos, Canifa, Ventania, Zarolho, Espicho, Bola Quatro, Pardinho, Cruza Mais Alto, Boneco, Janguinho, Figurinha Carimbada, Nariz e Deu Pra ti. A maldade de crianças e de adolescentes em se tratando de apelidos não tinha limites. Aquele que mais me marcou foi o do Pleonasmo. Lembro dele saindo do colégio na sua bicicleta vermelha. De repente, um bando gritava: “Pleonasmo é uma figura, Pleonasmo é uma figura, Pleonasmo é figura…”

Pleonasmo era uma figura. Duplamente. Que personagem! Era um menino timidamente discreto. Sofria com as implicâncias maldosas dos outros e não sabia como se vingar. Todo dia alguém o mandava subir para cima, descer para baixo, entrar para dentro, sair para fora ou simplesmente desaparecer por completo. Mas o pobre Pleonasmo não conseguia livrar-se de si mesmo e ainda tinha de suportar o fato de estar sempre consigo mesmo diante dos demais. Pleonasmo ostentava as maiores espinhas do mundo. E também o maior narigão do planeta. Era miúdo como um piolho minúsculo e espevitado como um porco-espinho. Era um bom menino maltratado pelos colegas desalmados. Pobre do Pleonasmo! Sabia tudo de matemática e tudo e mais um pouco de química e biologia. Pleonasmo era um baita gênio, compreendem? Tenho certeza de que os outros tinham inveja dele. Confesso: eu tinha. Um pouco, ao menos.

Tudo na vida do Pleonasmo era exagerado. Na verdade, tudo na sua existência atormentada era um mal-entendido mal explicado. Quando Pleonasmo se apaixonou pela primeira vez, mergulhou num inferno diabólico e ardeu como uma brasa no fogo do demônio. A guria não queria saber dele de jeito nenhum e fugia como o diabo foge da cruz. Pleonasmo virou poeta. Mau poeta. Escreveu os versos mais tristes e ruins do mundo e chegou a ombrear com Casimiro de Abreu em tristonha melancolia.

Andou sorumbático e acabrunhado olhando com seus olhos o objeto do seu amor desdenhá-lo como se ele fosse um morto já falecido, enterrado e esquecido pela eternidade. Chegou a ler Fernando Pessoa na biblioteca pública: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal”. Foi um rio de lágrimas salgadas por anos a fio. Por fim, Pleonasmo desistiu. Ufa! O problema mesmo do Pleonasmo é que ele era realmente exagerado. Falava pouco, mas, quando falava, tudo ficava enfático, redundante, extraordinário, sem precedentes, tipo frase para lacrar.

Disposto a lutar contra os seus inimigos, Pleonasmo resolveu ser ainda mais inteligente. Leu tudo o que encontrou. Devorou gramáticas. Descobriu que os colegas haviam cometido um gigantesco erro com ele. Ficou calado. Quando o bando gritava “Pleonasmo é uma figura, Pleonasmo é uma figura, Pleonasmo é uma figura”, ele apenas sorria candidamente. Sabia que estavam errados. Eram uns burros de quatro patas. Pleonasmo havia aprendido que o seu problema não era de pleonasmo. Mas de hipérbole. Ficou morrendo de alegria ao constatar que os colegas nada entendiam de figuras de linguagem. Virou um excelente gramático. Moral da anedota: nunca se deve desprezar a inteligência de um homem marcado por um apelido tentacular. Viva o plágio! Ou seja, a vida é dura.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.