Ensaio | Parêntese

Marília Kosby: Diário de alguma guerra, Parte II

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Marília Kosby: Diário de alguma guerra, Parte II 19 de março de 2020Boa Vista/RR A tuberculose de 2011 me apresentou um medo novo. O medo de morrer em isolamento. Curiosamente, a pandemia causada pelo novo coronavirus não me reaproximou desse medo. Ela me apresentou outro medo novo: o de que pessoas, mais ou menos próximas, morram isoladas. Talvez seja o mesmo medo, travestido de subterfúgios ritualísticos. E pulverizado. Sempre que me deparo com essa palavra, lembro dos aviões que pulverizavam, despejavam, insumos tóxicos na lavoura de arroz, no milharal. Fugindo de sermos também pulverizadas, saíamos disparando para dentro de casa, onde nos diziam “esse milho não é pra comer, tem veneno!”. Não tinha nada de estranho nisso, era assim desde o meu curto sempre – eu ainda nem me conhecia por gente. E nós não comíamos mesmo o milho, dávamos às galinhas. Elas, sim, comíamos. Salivo de lembrar das coxas tenras e suculentas, desenterradas da panela de arroz brilhante. Despeço-me de Boa Vista às pressas. No aeroporto, cada movimento não calculado parece que vai detonar uma bomba. Tenho Manaus e Campinas pela frente. Mas o voo é diurno e vou ver a floresta Amazônica de cima, o rio Amazonas. Compenso-me, enquanto observo anciãs venezuelanas sendo encaminhadas ao embarque do voo para Natal, por agentes das ONU. Aonde se vai, numa hora dessas, quando só se consegue andar com ajuda de uma bengala? Os velhos não devem ficar em casa? Que casa, besta sedentária? Estou um caco, só um farrapo imbecil de gente se faria essa pergunta, numa hora dessas.  Estou num voo nacional cheio de haitianos, fico aliviada. Assim são os voos que saem de Boa Vista, carregados de imigrantes. Fico aliviada porque, ao contrário da tripulação do voo, a maioria dos passageiros cobre os rostos como pode. Aliás, a única menção que a companhia aérea faz à pandemia de Covid-19, durante as 9 horas de voo, foi ao chegarmos no aeroporto de Viracopos, para que observássemos as mudanças nos horários das nossas conexões. Ter haitianos ao lado nessa trincheira era um alívio, calejados que são de sobreviver a ataques genocidas. Penso nos povos ameríndios, nas populações negras arrastadas da África até aqui. Não concluo meu raciocínio. O que me larga com uma sensação de mesa em falso. De tosse não tossida. A guerra insiste em cavoucar metáforas no que penso. Atravesso o país como quem atravessa um campo de batalha. É exasperante não me ocorrer outro léxico, menos obsceno. Trincheira, batalha, hitler e aqueles que não acreditaram no seu potencial letal. Eu nunca estive numa guerra. E, no entanto, deserto. *** Cheguei em Liège durante as férias de verão européias. Era setembro de 2018. Busquei uma escola de francês, para garantir a conversa nesta língua, enquanto não encontrava minhas colegas belgas. Era uma Escola de Promoção Social, das que recebem refugiados e imigrantes em geral, que precisam aprender o francês para conseguirem emprego e requererem seu visto de permanência no país. Uma amiga brasileira me indicou, disse que as aulas eram voltadas para a conversação. Éramos três […]

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19 de março de 2020Boa Vista/RR A tuberculose de 2011 me apresentou um medo novo. O medo de morrer em isolamento. Curiosamente, a pandemia causada pelo novo coronavirus não me reaproximou desse medo. Ela me apresentou outro medo novo: o de que pessoas, mais ou menos próximas, morram isoladas. Talvez seja o mesmo medo, travestido de subterfúgios ritualísticos. E pulverizado. Sempre que me deparo com essa palavra, lembro dos aviões que pulverizavam, despejavam, insumos tóxicos na lavoura de arroz, no milharal. Fugindo de sermos também pulverizadas, saíamos disparando para dentro de casa, onde nos diziam “esse milho não é pra comer, tem veneno!”. Não tinha nada de estranho nisso, era assim desde o meu curto sempre – eu ainda nem me conhecia por gente. E nós não comíamos mesmo o milho, dávamos às galinhas. Elas, sim, comíamos. Salivo de lembrar das coxas tenras e suculentas, desenterradas da panela de arroz brilhante. Despeço-me de Boa Vista às pressas. No aeroporto, cada movimento não calculado parece que vai detonar uma bomba. Tenho Manaus e Campinas pela frente. Mas o voo é diurno e vou ver a floresta Amazônica de cima, o rio Amazonas. Compenso-me, enquanto observo anciãs venezuelanas sendo encaminhadas ao embarque do voo para Natal, por agentes das ONU. Aonde se vai, numa hora dessas, quando só se consegue andar com ajuda de uma bengala? Os velhos não devem ficar em casa? Que casa, besta sedentária? Estou um caco, só um farrapo imbecil de gente se faria essa pergunta, numa hora dessas.  Estou num voo nacional cheio de haitianos, fico aliviada. Assim são os voos que saem de Boa Vista, carregados de imigrantes. Fico aliviada porque, ao contrário da tripulação do voo, a maioria dos passageiros cobre os rostos como pode. Aliás, a única menção que a companhia aérea faz à pandemia de Covid-19, durante as 9 horas de voo, foi ao chegarmos no aeroporto de Viracopos, para que observássemos as mudanças nos horários das nossas conexões. Ter haitianos ao lado nessa trincheira era um alívio, calejados que são de sobreviver a ataques genocidas. Penso nos povos ameríndios, nas populações negras arrastadas da África até aqui. Não concluo meu raciocínio. O que me larga com uma sensação de mesa em falso. De tosse não tossida. A guerra insiste em cavoucar metáforas no que penso. Atravesso o país como quem atravessa um campo de batalha. É exasperante não me ocorrer outro léxico, menos obsceno. Trincheira, batalha, hitler e aqueles que não acreditaram no seu potencial letal. Eu nunca estive numa guerra. E, no entanto, deserto. *** Cheguei em Liège durante as férias de verão européias. Era setembro de 2018. Busquei uma escola de francês, para garantir a conversa nesta língua, enquanto não encontrava minhas colegas belgas. Era uma Escola de Promoção Social, das que recebem refugiados e imigrantes em geral, que precisam aprender o francês para conseguirem emprego e requererem seu visto de permanência no país. Uma amiga brasileira me indicou, disse que as aulas eram voltadas para a conversação. Éramos três […]

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