Ensaio | Parêntese

Marta Orofino e Gabriel Madeira: Na carona de Coltrane

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Marta Orofino e Gabriel Madeira: Na carona de Coltrane – Sabe o que quer dizer contraste? – perguntou o Neco à Chiquita. E, sem esperar resposta, ou certo de qual seria ela, prosseguiu, apontando o Gazômetro: – É ver de um lado todas aquelas pompas luminosas e ali aquele grande quadrado, pintado a piche, encerrando aquele círculo de ferro, preto e luzidio. Mas isso nem vale a pena se ver. Como está bonito o Asilo de Santa Thereza, lá longe, com a sua caliça branca faiscando, com todo aquele brilhante colorido e doiradas fulgurações que a derradeira luz do sol dá aos vidros das janelas, que bem parecem grandes facetas de esmeraldas, de rubis, de ametistas, de topázios. E o Asilo de Mendicidade, meio oculto pela folhagem verde das árvores, com a alva torre de sua capelinha escalando o céu calmo, toda cheia de rendinhados, direita e pontiaguda como uma flecha (…) Como tudo isso é belo, Chiquita! É assim que Neco Borba conduz o olhar do leitor e da sua amada Chiquinha para a beleza turística de um Porto Alegre do século XIX: através de um passeio de bonde. A visão, desaparecida logo após a “curva da Varzinha” não diminui o amor entre os protagonistas do romance Estrychnina, escrito a três mãos pelos escritores porto-alegrenses Mário Totta, Paulinho Azurenha e Souza Lobo, em 1897. Para além das desventuras amorosas, a obra convida o leitor a percorrer a vida que pulsa na Porto Alegre daquele tempo, dentro e fora dos prédios, teatros, bairros e ruas.  Daquele tempo para cá, a cidade em muito mudou. Bondes, já não existem mais, porém o percorrer trajetos consagrados ainda pode suscitar redescobertas de histórias da cidade e também das lembranças daqueles que, como flâneurs, perdem-se nas ruelas de suas próprias memórias. Como o Coliseu romano, imagem que Freud utilizava para falar dos vestígios do infantil no inconsciente, as ruas de nossas cidades estão repletas de escombros de narrativas. Lugares em que a nossa experiência como acompanhantes terapêuticos – amistosamente chamados de AT – possibilita o descobrimento de outras rotas de navegação, em meio aos restos de memórias coletivas e individuais. Visto como uma das grandes conquistas da Reforma Psiquiátrica no Brasil, o acompanhamento terapêutico é um trabalho clínico desenvolvido por um ou mais profissionais da saúde mental visando promover a autonomia e fortalecimento psíquico por meio da circulação, ocupação e apropriação de espaços públicos e privados. A rua, a casa, o cinema, lanchonetes e praças podem virar cenários desta atividade. Por estar fora dos enquadres habituais, o AT – por vezes também chamada de clínica peripatética ou clínica a céu aberto – é um dispositivo clínico complexo, exigindo certa maturidade de quem o sustenta: no exercício desta clínica sem muros, o acompanhante é intensamente demandado, em seu corpo e nome próprio, a ser continente das questões que geram impasses na vida cotidiana de seus acompanhados, ao passo que se encontra sem o abrigo das paredes físicas da instituição. Não raro, situações insólitas, às vezes que podem pôr o próprio corpo do acompanhante em […]

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– Sabe o que quer dizer contraste? – perguntou o Neco à Chiquita. E, sem esperar resposta, ou certo de qual seria ela, prosseguiu, apontando o Gazômetro: – É ver de um lado todas aquelas pompas luminosas e ali aquele grande quadrado, pintado a piche, encerrando aquele círculo de ferro, preto e luzidio. Mas isso nem vale a pena se ver. Como está bonito o Asilo de Santa Thereza, lá longe, com a sua caliça branca faiscando, com todo aquele brilhante colorido e doiradas fulgurações que a derradeira luz do sol dá aos vidros das janelas, que bem parecem grandes facetas de esmeraldas, de rubis, de ametistas, de topázios. E o Asilo de Mendicidade, meio oculto pela folhagem verde das árvores, com a alva torre de sua capelinha escalando o céu calmo, toda cheia de rendinhados, direita e pontiaguda como uma flecha (…) Como tudo isso é belo, Chiquita! É assim que Neco Borba conduz o olhar do leitor e da sua amada Chiquinha para a beleza turística de um Porto Alegre do século XIX: através de um passeio de bonde. A visão, desaparecida logo após a “curva da Varzinha” não diminui o amor entre os protagonistas do romance Estrychnina, escrito a três mãos pelos escritores porto-alegrenses Mário Totta, Paulinho Azurenha e Souza Lobo, em 1897. Para além das desventuras amorosas, a obra convida o leitor a percorrer a vida que pulsa na Porto Alegre daquele tempo, dentro e fora dos prédios, teatros, bairros e ruas.  Daquele tempo para cá, a cidade em muito mudou. Bondes, já não existem mais, porém o percorrer trajetos consagrados ainda pode suscitar redescobertas de histórias da cidade e também das lembranças daqueles que, como flâneurs, perdem-se nas ruelas de suas próprias memórias. Como o Coliseu romano, imagem que Freud utilizava para falar dos vestígios do infantil no inconsciente, as ruas de nossas cidades estão repletas de escombros de narrativas. Lugares em que a nossa experiência como acompanhantes terapêuticos – amistosamente chamados de AT – possibilita o descobrimento de outras rotas de navegação, em meio aos restos de memórias coletivas e individuais. Visto como uma das grandes conquistas da Reforma Psiquiátrica no Brasil, o acompanhamento terapêutico é um trabalho clínico desenvolvido por um ou mais profissionais da saúde mental visando promover a autonomia e fortalecimento psíquico por meio da circulação, ocupação e apropriação de espaços públicos e privados. A rua, a casa, o cinema, lanchonetes e praças podem virar cenários desta atividade. Por estar fora dos enquadres habituais, o AT – por vezes também chamada de clínica peripatética ou clínica a céu aberto – é um dispositivo clínico complexo, exigindo certa maturidade de quem o sustenta: no exercício desta clínica sem muros, o acompanhante é intensamente demandado, em seu corpo e nome próprio, a ser continente das questões que geram impasses na vida cotidiana de seus acompanhados, ao passo que se encontra sem o abrigo das paredes físicas da instituição. Não raro, situações insólitas, às vezes que podem pôr o próprio corpo do acompanhante em […]

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