Memória

Capítulo 5: Epidemia de desafios

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Capítulo 5: Epidemia de desafios

Outro dia, conversava pelo whatsapp com o Fischer, dizendo a ele como tem sido duro revirar as gavetas das memórias para produzir esta série de textos. Não tinha claro o quanto seria ainda mais complicado quando chegasse a 2020 e 2021, anos duríssimos – talvez os mais difíceis e desafiadores até aqui, nesta minha jornada de quase 60 anos. Vamos lá, enfrentar essa retrospectiva do tsunami, da avalanche, da tempestade perfeita, quem sabe todas as alternativas anteriores. Se vocês vêm comigo, tudo isso passa a ter algum sentido. Afinal de contas, parafraseando a canção de Roberto e Erasmo, o Tremendão, que nos deixou outro dia, “de que vale o paraíso sem amor” e sem poder compartilhar nossas mazelas? Além do horizonte deve ter algum lugar bonito para viver em paz, não é mesmo? E juntos, de preferência. Bora lá?

Ajustemos, pois, o calendário para fevereiro de 2020. A fatídica terça-feira de Carnaval, dia 25. A pandemia de coronavírus mal e mal esboçava presença nas manchetes. Por volta das 19h, chuva fina caindo em Atlântida Sul, e eu escorregando na lajota molhada da entrada da garagem da casa dos meus sogros. Quem primeiro me socorreu, ali, gemendo e caído na grama encharcada, foi o vizinho da frente, Peki – guarde esse sobrenome. Dois dias depois, em Tramandaí, cirurgia para colocação de uma placa de uns 15 centímetros e nove pinos no fêmur da perna esquerda, na conexão com o joelho. Uma pequena tragédia (o fato, não a cirurgia, que foi muito elogiada por todos os médicos que, depois, viram as radiografias). Mas menos mal que foi na esquerda, era o que todo mundo me dizia, já que essa sempre foi uma perna de apoio, enquanto a direita é que segurava as pontas, na prática. Bem, uma hora, ela haveria de cansar… E aquele viria a ser exatamente um marco importante nesse processo que se aceleraria nos próximos tempos.

Cinco dias depois da cirurgia, no dia 3 de março, segunda-feira, voltamos para Viamão, onde residíamos. A perna esquerda, bastante inchada e muito, muito dolorida, ficava embrulhada em ataduras. Nada de gesso, não se usa mais. Na terça, a Isabela, que estava na casa de uma amiga, enquanto a Fernanda dava uma reorganizada nas coisas para a minha convalescença no térreo (os quartos ficavam em cima), retornou para o lar, acompanhada de um mimosíssimo filhote de gato, o Sherlock (depois também Xerox, Xicote, Holmes, Mister Holmes, #gatíneo, etc.). Achamos que, diante da minha situação de fragilidade, com ela e a Fernanda tendo que tomar conta de tudo, o gatinho poderia ser um apoio emocional legal para a garota, do alto (ou do médio) de seus 11 anos recém-completados. E foi mesmo, mas por pouco tempo, infelizmente.

Já no dia 17 daquele mês, os colégios fecharam. A pandemia estava chegando com tudo, e com ela, o horror, o medo, o temor de se contaminar, as perdas – uma das primeiras vítimas das minhas relações foi justamente o Peki, que me acudiu quando da minha fratura. Em 23 de maio, soube que ele não havia resistido ao vírus. Provavelmente se contaminou pela companheira, enfermeira no Hospital Ernesto Dornelles, que não chegou a ficar doente.

Enquanto o mundo usava uma ou duas máscaras e mergulhava em um mar de álcool gel, na esperança de que ondas de assepsia nos livrassem da maldita Covid-19, eu seguia nas sessões de fisioterapia em casa, com a competentíssima e dedicada Beridiana, e em seguida também em uma clínica de Viamão, via SUS. As dores na perna esquerda perduraram durante um bom tempo, e até que eu me animasse a tomar banho dentro do box, sentado em um banquinho, demorou. Então, a Beridiana começou a estranhar que meu quadríceps da perna direita, o músculo que permite o movimento de chute, era dos poucos que não respondia aos exercícios que praticávamos ao menos duas vezes por semana, quase sempre na companhia do meigo Sherlock, não raro deitado em cima da minha perna esquerda, a convalescente, enquanto eu me virava com a outra.

Ainda assim, aos poucos, fui me animando a voltar a dirigir (carro adaptado, claro). Enquanto isso, a Isabela se ressentia mais e mais da falta dos amigos e colegas, do isolamento, da saudade dos avós e da prima, Jordana, então com quatro anos. A cada 15 dias, levantava-se a hipótese de que talvez as aulas retornassem. Pura ilusão. Vieram as tais bandeiras, apontando melhoras ou pioras por regiões do Estado. Que tempos foram aqueles?!!?!!? Essa história ainda vai ser contada, na dimensão de sua crueldade e sofrimento, sequelas para todo o sempre. (Anotação: tive que fazer uma breve pausa, servir um chimarrão. Está sendo difícil).

Suspiro. Retomando. Agora não lembro bem como, mas o fato é que caiu na minha rede (na web, no caso) um artigo do Dráuzio Varela falando de uma certa Síndrome Pós-Pólio. Nunca tinha ouvido falar, nem meu pai (pediatra formado em 1962, ano em que nasci, lembram?). Fiquei com aquilo guardado em uma gaveta de anotações cerebrais. Será que era por aí o meu caso? Em outubro, quando minha fratura já estava consolidada, uma enorme tristeza: o Sherlock, com apenas oito meses, teve uma reação renal à nimesulida, anti-inflamatório usado (mas não deveria) depois da cirurgia de castração, e nos deixou… Em dez dias, se foi. Vocês poderão achar que é exagero, mas neste exato momento meus olhos se enchem de lágrimas pela milésima vez, ao relembrar a despedida daquela fofura. Não, ainda não superei.

Em novembro, mais um desafio, nova sensação de perda e fracasso para administrar: era chegada a hora de nos mudarmos para uma casa alugada, no próprio Condomínio Cantegril. Tivemos que nos desfazer do nosso imóvel, adquirido em 2006, em razão das dificuldades financeiras tremendas, até mesmo com o risco de a casa ser retomada pela Caixa, financiadora da compra. Pelo menos era uma casa térrea, menos complicada para a minha mobilidade.

Mais ou menos nessa época, procurei o Arthur Soares, traumatologista filho de um casal de amigos dos tempos do Colégio Santa Rosa de Lima, onde meus dois filhos mais velhos estudaram anos. O Arthur, especialista em quadril, examinou-me com atenção e, em um primeiro momento, acreditou que tínhamos várias etapas possíveis, na tentativa de recuperar a funcionalidade do joelho: primeiro, uma infiltração; depois, injeção de Betatrinta (um corticoide com ação prolongada, em torno de 20 dias de alívio das dores, no meu caso). Ainda se poderia tentar, mais adiante, ácido hialurônico, e, se nada desse certo, talvez, quem sabe, uma prótese. Então, perguntei a ele sobre a Pós-Pólio. Ele não conhecia, mas foi pesquisar, e concluiu: sim, parecia ser o meu caso. E sendo assim – perda de força muscular progressiva e irreversível, dores nas articulações, com a consequente atrofia e possível fadiga – não era possível implantar uma prótese… Tudo indicava que a cadeira de rodas seria mesmo o meu destino.

O ano de 2021 estava se iniciando, e com ele, mais e más notícias: ainda em janeiro, soubemos, depois de uma internação um tanto repentina, por uma aparente insuficiência cardíaca e outras questões correlatas, que meu sogro estava, na verdade, com câncer no intestino, já com alguma metástase para o fígado. Expectativa de vida: um ano e meio, talvez dois (informação que não era preciso espalhar, e nem ele mesmo ficou sabendo). Haja equilíbrio emocional e resiliência.

Em março, depois de alguns contatos via grupos no Facebook, cheguei ao nome de um fisiatra, ortopedista e traumatologista: Paulo Mulazzani. Consulta em clínica particular, dessas a baixo custo (estamos há algum tempo sem plano de saúde), e o diagnóstico confirmado: Síndrome Pós-Pólio. Indicações: órteses nas duas pernas (tipo KAFO, ou seja, da coxa até o pé), cadeira de rodas e dieta (quanto menos peso, melhor). Caminho seria buscar a AACD (Associação dos Amigos da Criança com Deficiência), para solicitar os equipamentos via SUS, pois são caros e, não raro, os pacientes, por distintas razões, não conseguem se adaptar, ou às órteses, ou mesmo à cadeira. Fisioterapia e outras técnicas semelhantes poderiam ajudar, ainda que não significassem nenhuma expectativa de reversão, no máximo estabilização do meu quadro.

Para chegar à AACD, eu deveria procurar o posto de saúde mais próximo. Como eu morava em Viamão, a coisa se revelaria bem difícil: entrei em uma fila no sistema da Secretaria Estadual da Saúde que simplesmente não andou. Tudo muito complicado, eu me abatendo, desanimado, e no meio do ano, consultei um psiquiatra e passei a tomar Velija, para controlar a ansiedade e a depressão. Até porque em novembro teríamos que nos mudar novamente (o proprietário da casa que havíamos alugado vendeu a dita cuja pouco mais de 30 dias depois de ter locado, um sacana, apesar de estar no seu direito). Decidimos voltar para Porto Alegre e alugar um apartamento. Uma mudança (mais uma, diga-se) bem radical, incluindo novo colégio para a Isabela, distância das amigas, etc. Como o final de ano estava chegando, e em seguida os meses de praia, deixei para procurar o posto de saúde mais perto da nossa casa no final de fevereiro, início de março de 2022, para ver a questão do encaminhamento para a AACD, que estava parada. Uma pequena novela se iniciaria, que conto semana que vem, no sexto e último capítulo da série.

Antes de me despedir, cabe contar que segui trabalhando, apesar das poucas demandas em uma época de economia retraída. Ainda em 2020, finalizei a edição do livro Inteligência Financeira – o que não se aprende na escola sobre dinheiro, de Roberto Cazzetta. Também na época, produzi uma pequena tiragem do delicioso Sabores de Família – reculutando lembranças, organizado por Otávio Araújo e presenteado a seus familiares. Em 2021, depois de longo tempo trabalhando na redação e revisão dos textos, finalmente concluímos o livro A cerveja artesanal no Brasil, em que Werner Emmel conta sua trajetória como mestre-cervejeiro na Brahma e, depois, à frente da WE Consultoria, uma das pioneiras no segmento no país. 

Tem sido uma doideira, meus amigos e amigas. Por isso, Walter Franco que me perdoe a sutil adaptação, mas eu penso que “tudo é uma questão de manter a mente ativa, a espinha ereta (tanto quanto possível, se você tiver pólio) e o coração, sim, bem, mas bem tranquilo”. Até semana que vem.

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