Memória

“Kiss, que não se repita”: sobre lembrança, esquecimento e justiça memorial

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“Kiss, que não se repita”: sobre lembrança, esquecimento e justiça memorial Foto: Ariéli Ziegler/PMSM

Texto: Carlos Henrique Armani 

Não há conhecimento histórico sem o tempo presente de quem o produz. Significa dizer: há uma dimensão ético-política da escrita da história que a relaciona diretamente com a responsabilidade de produzir lembrança e evitar a promoção do esquecimento. O historiador, nesse sentido, é tanto produtor de memória quanto do conhecimento histórico sobre o passado. São teses óbvias, reiteradamente discutidas nos cursos de teoria da história e da historiografia. Walter Benjamin falou muito bem dessa relação, ao afirmar que o conhecimento histórico depende de uma articulação que não é somente uma correspondência entre conceito, narrativa e fato, como também é uma articulação que implica o kairós, a oportunidade, do tempo-agora.

Dez anos se passaram desde a maior tragédia da história de Santa Maria e uma das maiores do Brasil. Como sabemos, o incêndio na boate Kiss matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas. Depois de um julgamento conturbado em dezembro de 2021, apenas quatro pessoas subiram ao banco dos réus e foram condenadas.  Menos de um ano depois, o júri foi anulado e os réus foram soltos pela justiça, sem previsão de um novo julgamento. Apesar de ser um dos problemas mais sérios e importantes das demandas de memória – a denúncia da impunidade –, não é sobre os aspectos da justiça jurídica que eu gostaria de falar e sim, por razões profissionais, da justiça memorial, daquela que está na articulação da memória e da história.

As atividades rememorativas que marcaram os dez anos da tragédia da Boate Kiss foram realizadas por diversas associações que estão, desde 2013, buscando justiça pela perda de seus entes queridos e pelas diversas sequelas, físicas e mentais, que a tragédia ocasionou. Trata-se de grupos de sobreviventes e de familiares das vítimas que trabalham continuamente em campanhas de denúncia da impunidade, como também de prevenção para evitar novas catástrofes como a que ocorreu em Santa Maria. A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, bem como o Coletivo Kiss, que não se repita, trabalham sistematicamente na produção da justiça (memorial e jurídica), como vemos na mensagem central da campanha “resgatar a memória é construir o futuro”, ou do nome do próprio coletivo: “Kiss, que não se repita”. 

Tais grupos, juntamente com o Eixo Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, realizaram o evento de rememoração dos dez anos da tragédia por meio de atividades que foram desdobramentos de um grande repertório de registros e de lembranças que têm sido feitas desde 2013, uma espécie de memorial dinâmico que se apresenta para que não nos esqueçamos e não repitamos o que ocorreu naquela noite de 27 de janeiro. Nesses últimos dias de janeiro, mais precisamente nos dias 25, 26 e 27, esses grupos produziram uma série de atividades que funcionaram como indutores da memória, destacando a importância da rememoração e da memória afetiva compartilhada, em espaços públicos, das vítimas, com as vítimas, pelas vítimas (evidentemente, incluo todos os familiares e sobreviventes como vítimas). 

A rememoração é a lembrança de uma presença com toda a força que ela evoca na ausência. Em relação a ela, talvez não haja nenhum suporte de memória que substitua a plenitude da presença das pessoas amadas. Não obstante, não significa, como reiteradamente a associação e os coletivos afirmam, que o esquecimento e a falta de empatia da população deva ser o seu mote. E aqui entra outra questão crucial para a sociedade santa-mariense, para a história de sua cidade. Por quê? 

A história de uma cidade não é somente a celebração das suas felicidades, dos patrimônios festivos que funcionam como excelentes massagens ao ego de autoridades públicas e privadas que supostamente seriam os mestres da história, seus verdadeiros “heróis”. A história de uma cidade também é feita por traumas, por catástrofes e, na sua relação com a memória, pela produção de patrimônios difíceis e dolorosos, patrimônios que produzem forte comoção pela dor da lembrança que eles provocam e evocam. Tal relação nos leva a outro problema que induz a aproximação da história à memória, a saber, a maneira como Santa Maria desenvolve a relação com o seu passado e que define, muitas vezes, o que chamamos de sua memória viva e sua identidade. 

Como lidar com esse passado recente que não passa, que nos interpela como cidadãos e como sujeitos cujo habitar o mundo depende de uma decisão, que pode ser a de lembrar, ou a de esquecer? Lidar com esse passado recente também é um modo de fazer história. Nossa relação com um acontecimento trágico e traumático pode se estabelecer de diversos modos, entre os quais aquele que se dá pelo esquecimento involuntário ou intencional. Paul Ricoeur já chamou a atenção para o esquecimento, por vezes desejado em razão de algum tipo de fuga, “motivada por uma obscura vontade de não se informar, de não investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidadão, em suma, por um não-querer-saber” (RICOEUR, 2007: 455).  

Direcionar nosso olhar para o passado e escolher um repertório de lembranças que organiza nossas vidas na cidade que habitamos é uma forma de criar uma identidade e um sentimento de pertencimento, por mais doloroso e difícil que possa ser. O modo como nós produzimos a indiferença ao fazermos tábula rasa do passado também é parte da história da cidade, um modo de evitar o cara a cara com o trauma, com a dor e com a perda, algo que parece se estender a outros momentos da história dos modos como lidamos com a violência no Brasil. Como decidimos nossa condição de agentes nessa história depende de como encaramos o passado, mesmo que, ao arrostá-lo, as identidades que gostaríamos de manter percam sua força diante do evento traumático.

O compartilhamento da lembrança pode ser um amplificador do pertencimento e da identidade. Quando a pergunta “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?” foi lançada na campanha dos dez anos, as respostas foram e têm sido variadas. Contudo, há algo em comum nas respostas daquelas pessoas que não estiveram diretamente envolvidas com a tragédia, as quais responderam a ela de modo a solidarizar-se com as vítimas e a reforçar sua identidade em termos de um pertencimento à cidade onde a tragédia ocorreu. 

Não que seja algo do qual alguém deva orgulhar-se, mas diante de um patrimônio doloroso, quanto mais envolvidos se colocarem como pertencentes e, por que não dizer, testemunhas da tragédia, melhor será o processo de manutenção da recordação e quiçá, do combate à impunidade, que normalmente anda de mãos dadas com o esquecimento. Aqui, claramente, o conceito de testemunha tem um alcance maior, no sentido de ser não somente aquele ou aquela que viu e viveu com seus próprios olhos (o histor, de Heródoto), mas “aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro” pois, “somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente” (GAGNEBIN, 2009: 57).

Em meu caso, coloco-me como um historiador e como um cidadão habitante de Santa Maria que se sentiu acolhido pela cidade e que, desde o dia 27 de janeiro de 2013, ficou profundamente impactado pela violência que a cidade viveu e que tirou a vida de 242 jovens, um corte abrupto do futuro dessas pessoas. E aqui, por mais que possa haver aquele esquecimento do não-querer, a vida demanda de nós o futuro e, com ele, a esperança de que não se repita e que haja a condenação à impunidade.  Parafraseando palavras de Giorgio Agamben, que o matar seja reconhecido como assassinato para que haja efetivamente a nomeação e a devida condenação dos perpetradores do crime. E, igualmente, a esperança de que as experiências que carregamos sobre a tragédia sejam um horizonte de lembrança minimamente justo com todas as suas vítimas e com aquelas vítimas que sofrem diariamente a perda e o sofrimento das pessoas amadas. 

Lembro-me de três cartazes colados em frente à boate com as seguintes perguntas impressas: Calar é descansar? Silenciar é descansar? Esquecer é descansar? Minha resposta, como historiador comprometido com a ética da lembrança é: o esquecimento não é descanso, é indiferença moral.


Carlos Henrique Armani – Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria

REFERÊNCIAS:

  • Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. Santa Maria. Facebook: @AVTSMSantaMaria. Disponível em: https://www.facebook.com/AVTSMSantaMaria. Acesso em: 29 de jan. 2023.
  • Coletivo Kiss, que não se Repita. Santa Maria. Facebook:  @KissQuenaoserepita. Disponível em: https://www.facebook.com/KissQuenaoserepita. Acesso em: 29 de jan. 2023.
  • GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: ed. 34, 2009.
  • RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
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