Memória

Minha vida com Agatha Christie

Change Size Text
Minha vida com Agatha Christie

27.03.23 e 17.12.08

R.F. (Rodrigo do Futuro): Olá, R.P.! 

R.P. (Rodrigo do Passado): Olá, R.F.!

R.F.: Que bom que você não estranha nem um pouco a circunstância de receber uma mensagem do futuro.

R.P.: O impossível é só um acontecimento que ainda não aconteceu. Diga lá.

R.F.: Aqui no futuro, o sr. L.A.F., que você já conhece aí no passado, me pediu um relato dos anos em que fui Um dos Maiores (em Número de Páginas Traduzidas) Tradutores Brasileiros da sra. A.C. (Alteza do Crime), e me ocorreu: se você, aí no passado, nos mais remotos primórdios da sua carreira de tradutor, começasse a manter um sucinto diário de apontamentos, tais apontamentos me dariam tremenda mão aqui no futuro. Pode ser?

R.P.: Vou pensar. Como está o Brasil do futuro?

R.F.: Basta dizer que nós derrubamos por impedimento uma presidenta que não cometeu crime nenhum e depois elegemos um monstro (adorador de torturador) abertamente criminoso que cometeu abertos crimes na presidência e não apenas não derrubamos como quase reelegemos o monstro por uma diferença de votos mais fina do que um fio de cabelo.

R.P.: Como está o mundo?

R.F.: Acabando ainda.

R.P.: Eu vou ficar bem?

R.F.: Você receberá diversas visitas da Tristeza, piores do que todas que jamais recebeu, mas no fim você vai ficar bem como jamais ficou. Você fará uma coisa que achava que nunca seria capaz de fazer: escreverá e publicará um romance.

R.P.: Meu romance será lido por muitos milhares de leitores?

R.F.: Não.

R.P.: Por poucos milhares?

R.F.: Não.

R.P.: Um milhar?

R.F.: Não.

R.P.: Meio milhar?

R.F.: Próxima pergunta.

R.P.: Minhas ilusões serão perdidas?

R.F.: Não.

R.P.: Eu ainda serei tradutor de livros em 2023?

R.F.: Sim. O que você está traduzindo no momento, meu jovem?

R.P.: O conto “O escaravelho de ouro”, de Edgar Allan Poe. O que tu está traduzindo no momento, meu velho?

R.F.: O conto “Metzengerstein”, de Edgar Allan Poe. 

R.P.: Eu serei um tradutor excelente? Ao menos um tradutor bastante requisitado?

R.F.: Não e não. 

R.P.: Quem sabe não seria melhor eu tentar fazer outra coisa da vida.

R.F.: Não, você não vai tentar fazer outra coisa da vida.

R.P.: Por que tu fala você?

R.F.: Minha filha aprendeu a falar fora do Rio Grande do Sul e agora eu falo você que nem ela.

R.P.: Uma filha??? Me fala um pouco da tua (nossa) filha… Por favor!!!

R.F.: O sr. L.A.F. não quer saber da minha (nossa) vida, ele quer saber dos anos em que fui (fomos) Um dos Maiores (em Número de Páginas Traduzidas) Tradutores Brasileiros da Romancista Contista Dramaturga que Vendeu Sabe-se Lá Quantos Bilhões de Livros, Superada em Vendas Somente pela Bíblia e pelas Obras do Sr. Shakespeare.

R.P.: Só mais uma pergunta, é a última, eu juro. Tu pode responder com sim ou não. É possível mudar o futuro?

R.F.: Não.

R.P.: Eu poderia não topar nenhuma tradução da sra. A.C. e assim mudar o futuro.

R.F.: Você vai topar. Você nunca recusará nenhuma tradução. Você tem contas pra pagar.

18.12.08

L.P.M.: Tens interesse em pegar a tradução de um livro da sra. A.C.? Um crime adormecido, romance policial com a Miss Marple. Topas?

R.P.: Topo!

20.12.08

R.P.: Traduzi pela primeira vez uma frase da sra. Christie. Gwenda Reed stood, shivering a little, on the quayside. Gwenda Reed tremia um pouco, parada na área de desembarque do cais. 

R.F.: Você não começou muito bem. Você está dando uma informação (de que Gwenda está desembarcando e não embarcando) que o leitor do original só ganha no quinto parágrafo. Entendo que você não queira usar só “cais”, porque quayside é “cais + área em volta do cais”. Mas considere usar só “cais”. Gwenda Reed tremia um pouco, parada no cais. Fica bem mais escorreito.

R.P.: Não.

R.F.: Por favor!

R.P.: Não é possível mudar o passado.

R.F.: O impossível é só um acontecimento que ainda não aconteceu!

Gwenda Reed: Miss Marple tinha razão. Devíamos ter deixado o passado em paz.

09.01.09

R.P.: Já deixo a tradução na nova ortografia?

L.P.M.: Ainda não. Esperemos o lançamento da nova edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

R.P.: Oremos pelo trema!

20.03.09

R.P.: Tristesse me visitou. Não consigo traduzir. Vou ler um pouco. Vou ler o conto “O estudante”, do sr. Tchekhov. 

O estudante: E uma grande alegria de repente se mexeu na alma do estudante — ele até parou para respirar. O passado, ele pensou, está ligado ao presente por uma corrente ininterrupta de acontecimentos que brotam uns dos outros. Ele sentiu que acabara de ver as duas pontas da corrente: toquei uma, e a outra estremeceu. 

20.02.10

R.P.: A editora L.P.M. lançou Um crime adormecido: o último caso de Miss Marple, Último Romance Publicado de Agatha Christie — Minha Primeira Tradução Publicada em Papel.

Título original: Sleeping murder

Preparação: Patrícia Yurgel

Revisão: Bianca Pasqualini

ISBN: 978-85-254-2000-8

Texto: sem trema, de acordo com a nova ortografia.

01.11.10

Jornal E.: Acabou o Clube do Bolinha

Jornal A G.: A mulher pode

Jornal A T.: O Palácio veste saia

Jornal P.: Gaúcha por adoção é eleita presidente

04.02.13

L.P.M.: Octogésimo livro da sra. A.C., publicado em seu octogésimo aniversário (1970). “Aquele parecia ser apenas mais um dia na rotina dos voos internacionais. Mas um encontro inesperado no aeroporto de Frankfurt traz à tona uma trama diabólica que aponta para a possível existência de uma poderosíssima organização internacional, dedicada a semear o caos e criar uma nova ordem maligna sob o comando do Jovem Siegfried, anunciado como o filho de ninguém menos que… Adolf Hitler.” Topas? 

R.P.: Topo!

06.02.13

A.C. na Introdução de Passageiro para Frankfurt (universalmente considerado seu pior livro), p. 8 do Word: Nada é impossível, a ciência nos ensinou isso. Esta história é, em essência, uma fantasia. Não pretende ser nada mais. Mas a maioria das coisas que acontecem nela estão acontecendo, ou prometendo acontecer, no mundo de hoje. Não é uma história impossível — é apenas uma história fantástica. 

13.03.13

R.P.: Tristesse. Não consigo traduzir. Não consigo ler. Vou ver um filme. Vou ver o filme Monty Python em busca do Cálice Sagrado, dos senhores Chapman, Cleese, Gilliam, Idle, Jones e Palin.

Guardião da Ponte da Morte: Qual é a velocidade aérea de uma andorinha sem carga?

22.05.13

Morte na praia, p. 240 do Word: “Impossível! Não é, Poirot?” Hercule Poirot se moveu pela primeira vez. Ele disse com uma voz arrastada e triste: “Não, eu receio que não seja impossível”.

27.08.01

Michel, um personagem do sr. Houellebecq: Edward se considera um fracassado; não conseguira nada na vida, nem mesmo se tornar escritor. Afinal percebe que Henrietta nunca iria gostar dele; sua vida parecia definitivamente arruinada. É a partir desse momento que A mansão Hollow vira um livro emocionante e estranho; é como estar diante de águas profundas, agitadas. Na cena em que Midge salva Edward do suicídio e este lhe propõe casamento, Agatha Christie consegue algo muito bonito, uma espécie de maravilhamento à la Dickens.

02.01.14

R.P.: Li a Segunda Parte de Madame Bovary, do sr. Flaubert. No fim do capítulo V, a personagem Félicité fala da Tristesse que visita a filha de um pescador.

Félicité: Ela estava tão triste, tão triste… Sua doença era uma espécie de névoa na cabeça que ninguém conseguia tratar, nem os médicos nem o padre. Quando ficava muito mal, ela ia sozinha até a beira do mar, e muitas vezes a encontravam deitada de bruços, chorando em cima das pedrinhas.

10.01.14

Testemunha de acusação e outras histórias, p. 65 do Word: Estava muito preocupada com Felicie, segundo me disse. A moça tivera uma estranha espécie de colapso nervoso e desde então se mostrara muito estranha em seus modos.

R.F.: Você usou estranha tanto para “queer” como para “strange”.

27.03.23

Nadia Farran, personagem da série da Netflix You: I fucking love romances policiais. É uma fórmula, mas a fórmula é divertida. Ela te prende, esconde um comentário social por baixo do mistério. Professor, o seu problema é que mistérios entretêm. E sabe quem não precisa entreter? Homens brancos “gênios”. Ser chato é marca de grande arte. É por essas e outras que Agatha Christie é a romancista mais vendida de todos os tempos. É por essas e outras que 99% das pessoas não terminam Graça infinita

27.03.14

Por que não pediram a Evans?, p. 45 do Word: Seu olhar se deteve nos vasos de lírios. Uma tremenda doçura da parte de Frankie lhe trazer todas aquelas flores, e eram adoráveis, claro, mas Bobby desejou que tivesse ocorrido a ela lhe trazer alguns romances policiais. Ele fixou seu olhar na mesa de cabeceira. Havia um romance de Ouida, um exemplar de John Halifax, cavalheiro e o Marchbolt Weekly Times da semana anterior. Pegou John Halifax, cavalheiro. Cinco minutos depois, colocou o livro de lado. Para uma mente nutrida com A terceira mancha de sangue, O caso do arquiduque assassinado e A estranha aventura da adaga florentina, John Halifax, cavalheiro ficava devendo em matéria de dinamismo.

02.05.14

L.P.M.: Um passe de mágica, romance policial com a Miss Marple. Topas? 

R.P.: Topo!

11.07.14

Mistério no Caribe, p. 58 do Word: “Creio que Molly quer desesperadamente tentar parecer muito alegre, como se estivesse se divertindo. Ela se mata para passar essa impressão, mas o esforço a esgota. Então é acometida por irregulares ataques de depressão. Ela não é… bem, não é realmente bem equilibrada.” “Pobre criança”, disse Miss Marple, “certamente existem pessoas assim, e com muita frequência quem vê de fora não suspeita de nada.”

24.08.14

R.P.: Tristesse. Não consigo traduzir. Não consigo ler. Não consigo ver filme. Vou pedalar no Parque Marinha.

Duas horas depois: Caí de bicicleta. Deixei dez gotas do meu sangue no Velódromo do Parque Marinha.

27.09.14

É fácil matar, p. 64 do Word: Você poderia escrever um livro… mas não esse tipo de livro… Você não é o tipo de homem para quem o passado signifique grande coisa… talvez nem mesmo o futuro… só o presente, nada mais.

27.10.14

Jornal Z.H.: “Por um espaço de diálogo”

Jornal O P.: O desafio de unir um Brasil dividido

Jornal E. de M.: Mais quatro anos

Jornal F. de S.P.: Dilma é reeleita na disputa mais apertada da história

11.01.15

R.P.: Traduzi pela última vez uma frase da sra. A.C. “Elephants can remember,” said Mrs. Oliver, “but we are human beings and mercifully human beings can forget.” “Os elefantes não esquecem”, disse a sra. Oliver, “mas nós somos seres humanos, e os seres humanos, misericordiosamente, podem esquecer.”

R.F.: Mercifully. Não seria melhor “felizmente” ou “afortunadamente”?

R.P.: Gosto mais de misericordiosamente. Fica bem mais escorreito. E além do mais: a felicidade é sempre uma espécie de misericórdia.

R.F.: De todo modo, essa não é a última frase da sra. A.C. que você traduziu. A editora L.P.M. vai perguntar se você topa pegar o romance Nêmesis e uns contos do Poirot. Você vai responder: Topo!

06.01.16

Agatha Christie Brasil: Você traduziu 11 livros da sra. A.C. desde 2010. Antes disso, já tinha lido algum livro dela? Era fã?

R.P.: Eu não tinha lido nenhum livro dela antes. Não por desinteresse. Ela estava entre os incontáveis autores que “um dia” eu ainda ia ler. Assim, o primeiro livro dela que li foi o primeiro que traduzi, Um crime adormecido. Desde então, mantenho a prática de não ler as histórias até o final antes de traduzi-las, para exercitar lentamente os meus poderes de dedução e ver se consigo descobrir quem é o assassino antes da revelação propriamente dita. Em todas as ocasiões, fracassei redondamente.

Agatha Christie Brasil: Você chegou a ver algum dos filmes baseados nos livros que traduziu antes ou depois de fazê-lo?

R.P.: Eu já tinha visto Testemunha de acusação, do sr. Wilder, e depois o revi com deslumbramento redobrado. Atrás desse, num segundo lugar nem tão distante assim, meu preferido é o permanentemente ensolarado Assassinato num dia de sol, do sr. Hamilton, adaptação de Morte na praia — o sr. Ustinov, no papel do sr. Poirot, toma um banho de mar: entra na água sem se molhar acima dos joelhos, dá uns dez passos fazendo movimento de nado livre com os braços no ar e então sai, tirando água do ouvido. 

02.02.16

R.P.: Tristesse. Não consigo traduzir. Não consigo ler. Não consigo ver filme. Não consigo pedalar. Vou ouvir música. Se tem uma coisa que eu nunca não consegui fazer é ouvir música. A primeira canção do shuffle é “Human Sadness”, dos senhores Julian Casablancas + The Voidz.

Julian Casablancas + The Voidz: Quem canta seus males espanta.

17.04.16

J.B.: Perderam em 64. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve! Contra o comunismo! Pela nossa liberdade! Contra o Foro de São Paulo! Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff! Pelo Exército de Caxias! Pelas nossas Forças Armadas! Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim!

03.05.16

R.P.: Traduzi pela última vez uma frase de Agatha Christie. He felt in a mood to carry all before him. Sentia-se capaz de superar todos os obstáculos em seu caminho. Obrigado, L.P.M. e A.C.! Vocês me deram milhares de Horas Felizes no Word. Vocês me ajudaram a pagar centenas de compras no Supermercado Z. do Menino Deus. Obrigado, R.F., por me contar que vou ficar bem e que vou continuar traduzindo. Os elefantes não traduzem, mas nós somos seres humanos, e os seres humanos, misericordiosamente, podem traduzir.

THE END


Rodrigo Breunig estudou jornalismo e fez mestrado em literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Traduz e edita livros. É autor do romance A última noite das bicicletas (Edição do Autor, 2020), além disso é o maior tradutor da AC em números de páginas e paixão.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.