Memória

Capítulo 1: E nada de eu me entregar

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Capítulo 1: E nada de eu me entregar
Pólio é uma série de 6 capítulos que Ricardo Bueno compartilha com os leitores da Parêntese.

Parece inacreditável, mas em tempos em que quase tudo soa distópico, não chega a surpreender que a campanha de vacinação contra a pólio, encerrada na sexta, dia 21, tenha atingido menos de 50% do objetivo – e apesar de já ter sido prorrogada. Para mim, que fui vitimado pela paralisia infantil em 1963, aos 11 meses, esse neonegacionismo contra as vacinas é algo entre deprimente e revoltante. Não apenas por pensar que a doença já esteve erradicada ou por lembrar das sequelas que a paralisia infantil deixa, muitas vezes levando à morte, inclusive. Mas também por uma razão um tanto inusitada, que me abalroou há uns dois anos, feito um caminhão sem freios descendo a ladeira, e que quase não tem tido espaço na imprensa. 

Descobri, recentemente, que existe uma tal de SPP: Síndrome Pós-Pólio. Em razão dela, e às vésperas de completar 60 anos, estou sendo surpreendido pela necessidade de ter que aprender a reconquistar minha mobilidade, a qual sempre chamou a atenção de todos que convivem comigo. Não raro, eu ouvi, ao longo de quase seis décadas de vida, coisas do tipo “tu pareces uma pessoa ‘normal’, a gente nem se lembra que tu tens uma deficiência, apesar de usar as bengalas…”. Interessante é que eu mesmo me percebia assim. Mas as coisas mudam. E como. Em resumo: como se não bastasse a crueldade de seus efeitos “convencionais”, a paralisia infantil revelou que tem uma espécie de repique… 

Como descobri a SPP?

Voltemos a fevereiro de 2020, terça-feira de Carnaval, quando tive uma queda na praia: tudo por causa de um escorregão bobo da minha bengala direita na lajota molhada por uma garoa fina que umedecia o final da tarde em Atlântida Sul. Acontece que caí por cima da perna esquerda, mais frágil que a direita, por ser a que foi mais afetada pela pólio, e a mesma na qual eu havia tido uma fissura em 2015, também por uma queda banal, dentro de casa. O episódio no litoral norte gaúcho foi bem mais sério: uma fratura complicada. No dia 27 de fevereiro, passei por uma cirurgia em Tramandaí, para colocação de uma placa de uns 15cm no fêmur, próximo ao joelho, afixada por nove pinos.

A recuperação se deu em Viamão, onde então residíamos, e em meio à pandemia, que se iniciou na prática uns 20 dias depois da cirurgia, na segunda quinzena de março daquele ano. Até a consolidação total da fratura, foram seis meses, muita dor, fisioterapia (nas duas pernas, porque a direita também havia ficado um pouco atrofiada). À medida que fui retomando as atividades, o joelho direito foi dando mostras de que não estava muito a fim de seguir me apoiando… Outro flashback: em 2019, depois de uma repentina crise de dor no joelho direito, eu havia feito uma ressonância magnética, que apontou diversos desgastes, pequenas lesões, avarias, etc. Mas, na ocasião, o traumato que consultei foi um tanto low profile, e só me recomendou não subir escadas por uns dois, três meses. 

Na verdade, ali estava o retrato de um processo que havia se iniciado bem antes, lenta e gradualmente minando a minha força muscular e provocando dores nas articulações, além de alguma fadiga, mais da perna direita, mas um tanto difusa no geral, com um certo cansaço para tudo. Era a tal de SPP, a famigerada Síndrome Pós Pólio, que acomete, já na idade adulta, pessoas vitimadas pela paralisia infantil. Bem resumidamente: os neurônios motores que o organismo gera, para compensar e “equilibrar” quem teve pólio (no meu caso, dando uma ajuda extra para a perna direita segurar o rojão), uma hora cansam. Tipo: “Bah, missão cumprida. Agora te vira.” 

Oi? Então é por isso que agora preciso fazer xixi sentado, escovar os dentes sentado, tomar banho sentado? É por isso que só consigo caminhar pequenas distâncias, e com dor aguda no joelho? “Exatamente”, respondo eu para mim mesmo. Vem daí um bordão que criei não faz muito: sinto dor todos os dias, mas não o dia todo – sentado, aqui e agora, escrevendo este texto, está tudo bem. Mas daqui a pouco preciso ir ao banheiro…

Um outro detalhe importante: em 2011, quando passei pela Junta Médica do Detran para renovar minha carteira de motorista (desde 1997 dirijo carro automático ou semiautomático, por não ter força na perna esquerda para acionar a embreagem, e periodicamente sou avaliado por três médicos), foi-me determinado que passasse a usar também acelerador e freio manual. Mas não pensem que a gente é informado no próprio laudo da junta sobre qual a justificativa para aquela decisão, muito menos uma conversa de, digamos, 5 minutos, tipo “O senhor está perdendo força na perna direita, e isso implica riscos para frenagem, mas também pode resultar em cansaço para acionar o acelerador, em caso de uma viagem longa. Seria recomendável investigar e ver o que precisa ser feito para mitigar esses efeitos da pólio.” Não. Nada. Apenas letras/códigos aparecem no verso da carteira de habilitação (é preciso procurar o significado de cada um deles, tipo “obrigatório uso de óculos ou lente de contato”), assim como no laudo (que a gente, a propósito, precisa ir lá no Detran buscar) também não consta a motivação daquela recomendação da junta médica.

Voltemos a março de 2021: um ano após a fratura na perna esquerda, quando finalmente tive diagnosticado que meu problema era a Pós Pólio – e muito porque eu mesmo fui atrás de confirmar essa possibilidade, depois de por acaso ler uma coluna do Dráuzio Varela sobre o assunto –, iria se iniciar a nova fase: a que prevê o uso, nas duas pernas, de órteses tipo KAFO (iniciais em inglês de Knee, Ancle and Foot Orthesis), aparelhos que vão da coxa ao pé, bem como de cadeira de rodas. Os desdobramentos eu conto na semana que vem, num total de seis edições da Parêntese, atendendo gentil convite/convocação do mestre Fischer (que demorei a atender, registre-se). Na série, farei mais alguns flashbacks sobre essa intensa e desafiadora trajetória de vida: uma travessia repleta de montanhas, vales, suaves riachos e agudas cachoeiras, chuva, sol, neve, desertos – e nada de eu me entregar. Sempre em frente.


Ricardo Bueno, 59 anos, é jornalista, escritor e poeta inédito – seu “Gaveta de Guardados” está em produção e deve ser lançado até dezembro. Autor de mais de duas dezenas de livros sobre momentos históricos no Brasil e sua relação com economia, cultura e sociedade, foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura – Categoria Especial 2017-18 com o livro “O aço e as artes”. É gestor de conteúdo do podcast Clube FTA – Futebol, Trago & Assados (@clubefta), disponível no Spotify. Diretor da Alma da Palavra, trabalha com projetos culturais, biografias empresariais e, mais recentemente, produção de conteúdos para sites e marketing de relacionamento na web. É Colorado praticante, e se prepara para lançar, ainda em 2022, uma torcida organizada de integrante único: a Cadeirante Delirante Colorado.

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