Memória

Capítulo 2: O sol e as tempestades da infância

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Capítulo 2: O sol e as tempestades da infância

Pólio é uma série de 6 capítulos que Ricardo Bueno compartilha com os leitores da Parêntese.

Não sei se vocês chegaram a ler, mas ali na minha minibiografia, no pé do texto anterior (e também deste), consta que pretendo fundar a Cadeirante Delirante Colorado, uma nova torcida organizada – e bota organizada nisso, até por ter um integrante só, pois, salvo melhor juízo, serei o fundador, presidente e sócio número 1 (ou único). A CDC substituirá a sua versão anterior, chamada Muleta Colorada, uma brincadeira que fiz a partir de uma faixa permanentemente estendida no Beira-Rio, com a inscrição Mureta Colorada. Nunca soube se era uma torcida de fato, ou apenas o registro da presença daqueles que preferem ver o jogo em pé, junto à divisória com o gramado, algo próximo da antiga coreia, setor de ingresso mais barato, em que se assistia as partidas em pé e que hoje não existe mais. Falar de futebol e do Inter, uma de minhas mais loucas paixões, é sempre um prazer, até porque me permite entrar no túnel do tempo e, entre tantas lembranças, retornar à Vacaria dos anos 1960-70, a aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais, como diria o poeta.

No primeiro texto da série, informei que tive pólio com 11 meses. Desde que me lembro de mim mesmo, sempre usei bengalas. A minha perna esquerda não “firmava”, em razão da falta de nervos (lesados pela paralisia) para acionar a musculatura que movimenta as articulações e deveriam ser responsáveis por manter o meu joelho firme. Das duas, uma: ou eu me arrastava no chão (o que muitas vezes fazia dentro de casa, brincando com meus irmãos), ou, precisando caminhar, só com os famosos bastões canadenses, nome oficial das conhecidas muletas (que, para mim, sempre foram aquelas outras, as que se apoia embaixo do braço). 

Antes que eu me esqueça: no dia 19 de dezembro de 1962, em Porto Alegre, nasci chorando no Moinhos de Vento, como diz a canção, mas morávamos em Vacaria, terra natal de meu pai. As lembranças mais nítidas, e que estão em ebulição em um enorme poema que chamei “Lá em casa tinha um poço”, são da casa no bairro Glória, um tanto afastado do centro da cidade: não era uma fazenda ou sítio, mas também não era exatamente urbano. Ali, em um pátio amplo, era onde tudo acontecia: jogar bola, subir no pinheiro e escorregar no bat-poste, tomar banho de chuva (mesmo com a perna engessada, azar), construir casinhas com as lâminas da serraria em frente, jogar bolinha de gude, fritar batatinhas em latas de azeite retangulares, que, cortadas em diagonal, também serviam para emular uma caçamba, conectadas a um grosso toco de madeira e erguidas com um singelo, mas eficiente, sistema de madeirinhas e barbantes. Era o lugar de cortar galhos em V da cerca-viva para fazermos nossas próprias fundas, e treinarmos a mira com a fartura de bolinhas oferecidas pelo pé de cinamomo. A calçada em frente à casa era inclinada, portanto uma lomba perfeita para os carrinhos de rolimã também construídos de próprio punho.

Mas também havia as viagens para Porto Alegre: ou para cirurgias, ou para trocar o gesso, ou para consultas periódicas com o doutor Remy Geremia, agora já falecido, que foi quem me cuidou desde sempre. Na época, de Vacaria à capital, e vice-versa, havia apenas a BR-116, muitas curvas, cruzando o rio das Antas, quatro longas horas de viagem serra abaixo ou serra acima, em geral apenas eu, meu pai e minha mãe (já falecida, nascida em Galópolis, distrito de Caxias do Sul, por onde passamos incontáveis vezes, brincando que deveria ser a “terra do galo”, e muitos anos depois foi tema de um livro que produzi, sobre Hércules Galló – essa história conto outra hora). 

Não sei exatamente quantas cirurgias fiz, quase todas nos meus primeiros oito anos de vida, tentando corrigir vários problemas causados pela pólio, como o pé esquerdo caído, etc. Mas sei que foram muitas, porque também as fiz na perna direita, o que pouca gente sabe, porque ela sempre pareceu “normal” – tenho testemunhas de que, adolescente, quando jogava bola no recém-inaugurado parque Marinha do Brasil, com as árvores ainda do tamanho de mudas, batia pênaltis e faltas com maestria. 

Entre as mais doloridas intervenções, esteve a de alongamento, nas férias de meio de ano, em julho de 1970 (duravam 30 dias), quando coloquei um aparelho de ferro que tinha um círculo de metal na sola do pé. A cada giro completo, os ossos da parte inferior da perna eram afastados 1 milímetro por um sistema de ferros que perpassavam minha canela em dois pontos distintos. Minha mãe girava o tal mecanismo meia volta durante o dia, e mais meia volta ao anoitecer. Era um sofrimento enorme para mim, e imagino que ainda maior para ela, por ser obrigada a infligir aquela dor em um garotinho de oito anos.

Nunca soube exatamente o quanto minha mãe ficou traumatizada com aquilo, pois ela não gostava muito de relembrar os momentos dramáticos vividos no Hospital Cristo Redentor, enquanto o pai trabalhava e ficava com meus irmãos em Vacaria. O fato é que o doutor Geremia interrompeu a tortura depois de 3,5 milímetros, se não me engano. Tampouco consigo dimensionar a dor de meu pai, que se formou médico pediatra quatro dias depois que nasci, e teve que conviver com a enorme frustração, meses depois, de ver um filho com pólio, correndo o risco de morrer, sem poder fazer absolutamente nada. A única alternativa era esperar a febre baixar, para constatar os estragos deixados pelo vírus, e partir, então, para atenuar as sequelas, que variam caso a caso.

Acabei não falando do Inter octacampeão gaúcho de 1969 a 1976 e bicampeão brasileiro em 1975-76. A cada Gauchão conquistado, desfilávamos pelas ruas de Vacaria com lençóis brancos e vermelhos, cada filho em uma das janelas do flamante Galaxie também vermelho do meu pai, à época cônsul do Inter na cidade. No final deste ciclo vitorioso, a paralisia infantil me deu um privilégio e me tirou outro, em 1976, quando fiz a última cirurgia corretiva daqueles tempos (só muitos anos mais tarde viria a cirurgia em decorrência da fratura, que contei no primeiro texto desta série). Explico: como viemos para Porto Alegre uma semana antes da intervenção cirúrgica marcada para 13 de dezembro de 1976, tive o privilégio de estar presente no Beira-Rio no jogo entre Inter x Atlético-MG, em que Falcão e Escurinho protagonizaram a mágica tabela de cabeça, com Falcão fazendo o 2 a 1 aos 45 minutos e 45 segundos da segunda etapa, e garantindo vaga na final contra o Corinthians, também no Beira-Rio, no dia 12. Acontece que minha baixa no Cristo Redentor aconteceu no sábado, dia 11, e o médico não me liberou para ir ao jogo no domingo, pois a cirurgia seria segunda pela manhã, cedo… Acabei assistindo a partida numa TV 14 polegadas Philco “Máscara Negra”, e quase enlouqueci as enfermeiras berrando na janela do quarto no segundo andar, quando dos gols de Dario e Valdomiro.

Aquela cirurgia seria decisiva na minha vida dali para a frente, pois permitiu que eu caminhasse pequenas distâncias sem bengalas: quando eu ficava em pé, uma pequena curvatura para trás na minha perna esquerda fazia com que meu joelho “trancasse”, em razão da estrutura óssea alterada na cirurgia, e não da ação da musculatura. Pura física! Claro que, muitas vezes, por uma ou outra razão, sem que eu pudesse adivinhar quando iria acontecer, o joelho “falhava”, e eu me estatelava no chão, caso estivesse sem as bengalas. E não foram poucas as quedas, as quais, em geral, eram motivo de muito riso, pelo patético da cena, uma vez que não lembro de ter me machucado em nenhuma delas.

Em 1977, vim morar em Porto Alegre, para fazer o então Segundo Grau. E é sobre a minha vida de adolescente e jovem adulto que comentarei no próximo texto. Cuidem-se, não façam bobagem, aceitem suas limitações e derrotas e comemorem suas qualidades e vitórias. Bebam com moderação. Sejam felizes, porque eu volto sábado que vem.


Ricardo Bueno, 59 anos, é jornalista, escritor e poeta inédito – seu “Gaveta de Guardados” está em produção e deve ser lançado até dezembro. Autor de mais de duas dezenas de livros sobre momentos históricos no Brasil e sua relação com economia, cultura e sociedade, foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura – Categoria Especial 2017-18 com o livro “O aço e as artes”. É gestor de conteúdo do podcast Clube FTA – Futebol, Trago & Assados (@clubefta), disponível no Spotify. Diretor da Alma da Palavra, trabalha com projetos culturais, biografias empresariais e, mais recentemente, produção de conteúdos para sites e marketing de relacionamento na web. É Colorado praticante, e se prepara para lançar, ainda em 2022, uma torcida organizada de integrante único: a Cadeirante Delirante Colorado.

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