Memória

Capítulo 6 – Sempre em frente: enfrente!

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Capítulo 6 – Sempre em frente: enfrente!

Qual é o verdadeiro sentido da palavra coragem? Ela se refere a algo valoroso que temos dentro de nós (destemor, bravura, ousadia) ou a alguma coisa da qual buscamos nos afastar (medo do desconhecido, insegurança, receio de enfrentar e, mais ainda, de perder)? Um misto de ambos os aspectos? Seria, então, a coragem o atributo daqueles que não desistem, aconteça o que acontecer? Durante toda a minha vida, fui elogiado pela forma natural com que lidei com minha deficiência física, e eu, gentilmente, contrapunha, quando havia espaço, dizendo que coragem mesmo tinham aqueles que perdiam algo no decorrer da existência – alguém que sofreu um acidente e ficou sem o movimento das pernas, tendo que abandonar as competições esportivas, por exemplo. Não era o meu caso, porque “desde sempre” eu convivi e me adaptei à pólio. Pois então veio a pós-pólio, como que a me dizer: “Ok, vamos testar de novo tua resiliência e capacidade de superação, que é para ver se tu te convences da força que tens.” A pós-pólio (que não veio só) me obrigou a renascer, a me reinventar – processo que segue em curso, a propósito. Como?

Voltemos ao início deste ano da graça de 2022, quando finalmente descobri o caminho que me levaria a um atendimento transversal ou multidisciplinar: bastava o posto de saúde me encaminhar para uma instituição como a já citada Associação de Apoio à Criança com Deficiência (AACD) ou ao Cerepal (Centro de Reabilitação de Porto Alegre). Fui, inicialmente, direcionado ao segundo. Antes disso, cheguei a passar pelo Hospital Independência, especializado em traumatologia, onde nunca tinham ouvido falar sobre a existência de um acompanhamento como eu buscava – no hospital, aparentemente, ou é cirurgia, ou nada.

Deixemos para lá a falta de sincronia entre as várias pontas de um sistema que vem evoluindo, mas ainda distante de contemplar um atendimento integral. O fato é que, depois de algumas semanas de vai-e-vem, finalmente cheguei ao Cerepal. Passei pela triagem, momento em que já foram tiradas as medidas da cadeira monobloco que me havia sido indicada pelo doutor Paulo Mulazzani (um tipo de equipamento mais leve e mais versátil, podendo ser em parte desmontado pelo próprio cadeirante e colocado no banco do carona, para oferecer maior autonomia). Passo seguinte seria uma consulta com um especialista. Estávamos em junho, próxima data livre somente em dezembro… Para minha surpresa, a moça do agendamento informou que naquela terça-feira alguém havia avisado que não poderia comparecer à consulta no dia seguinte. Eu estava com sorte. Ou era o que parecia.

Na quarta, lá estávamos nós, diante da simpática e interessada doutora Adriana, que examinou-me com muita atenção, acompanhada do fisioterapeuta que havia tirado as medidas da cadeira no dia anterior. Era claríssimo para ela que a extensão exagerada da minha perna direita (curvatura para trás) estava forçando as articulações do joelho, e portanto as órteses eram imprescindíveis. Pediu alguns exames de rotina, e na saída, a Fernanda, minha fiel escudeira, foi agendar a data para tirarmos as medidas dos aparelhos tipo KAFO (knee, ancle and foot orthesis, ou seja, da coxa até o pé, como já mencionei). Bola na trave: o convênio do Cerepal com o fornecedor estava rompido por falta de pagamento. Já sabíamos que a instituição estava enfrentando dificuldades, mas o fato em si pegou de surpresa a própria doutora Adriana, informada da situação na semana seguinte, quando lá retornamos. Acabou vindo dela mesma a sugestão: voltem ao posto e peçam baixa do tratamento aqui e o respectivo encaminhamento para a AACD, porque, sem as órteses, não vamos conseguir avançar em nada. Santa resiliência, diria o aflito Robin para o sempre zen Batman.

Na AACD, depois de outra consulta de triagem, também fomos tirar as medidas da cadeira. E então, depois de uns 30 minutos de muitas perguntas e questionamentos, fomos informados que o SUS não fornece o modelo monobloco para quem tem mais de 49 anos, sabe-se lá por quê, mas existe uma resolução formal sobre isso (que talvez o pessoal do Cerepal tenha esquecido). A opção: um modelo mais convencional, que se fecha em X, não rebate o encosto, mas até permite que se removam as rodas grandes. Só que é bem maior e não cabe, por exemplo, no porta-malas do nosso flamante Pálio Essence 2013. No banco de trás, até dá, com algum esforço. Mas no elevador do prédio onde moro, a cadeira só entra sozinha – se eu estiver sentado nela, deu ruim. O equipamento chegou muito rápido (bem antes do prazo previsto) e, apesar de não ser tão prático quanto a monobloco, ajuda. Minha primeira saída oficial foi em um comício no Largo Glênio Peres, piso de pedras portuguesas, muito irregular, mas para onde me desloquei em táxi especializado no transporte de PCDs, idem na volta. Depois de ziguezaguear pelos bretes do lugar lotado, fiz o L bem tranquilo, estacionado em um espaço reservado para cadeirantes e outros PCDs.

Consulta com o especialista da AACD finalmente realizada, o próximo passo era, enfim, tirar as medidas das órteses, a serem produzidas ali mesmo, na oficina da entidade. Tudo demora um pouco mais do que é sinalizado de início, mas acaba acontecendo. Quem me atendeu, gentil e interessadamente, foi o técnico Bruno. Duas semanas depois, a “prova” – e a sensação de que não iria ser tão fácil assim reaprender a caminhar com uma das pernas travada (a esquerda, já que o joelho, por si só, não “firma”) e a outra, livre, mas tendo alguma contenção na curvatura para trás (a tal extensão que pressiona a articulação). Fora a missa que é prender as tiras e velcros e encaixar um sapato ou tênis, já que o modelo em poliuretano contempla o solado do pé, também. De tal forma que eu, que calço 38-39, acabei comprando um tênis número 43. A órtese contempla um sapato especial, fabricado nos Estados Unidos, e que leva uns 120 dias para chegar.

Enquanto as órteses eram finalizadas, dois amigos me chamaram no privado, via redes sociais, e se prontificaram a me ajudar com o valor para a compra particular da cadeira monobloco, a qual custaria R$ 3.800,00, à vista. Um gesto que guardarei para sempre, de quem não teria o menor compromisso em fazê-lo mas, tendo feito, entra para o rol das pessoas que se diferenciam das demais pela enormidade de sua empatia.

A monobloco ainda não chegou (escrevo no dia 1º de dezembro, já se passaram dois meses da compra), mas venho usando as órteses com frequência, pois, na prática, apesar de levar uns 10 minutos para embrulhar as pernas, de elas serem um pouco quentes e de exigirem cuidado no andar, em razão dos movimentos diferentes e do próprio peso das articulações, MEU JOELHO DIREITO QUASE NÃO DÓI. Desculpem as letras maiúsculas, mas acontece que esse fato é relevantíssimo.

Nem tudo são as órteses, apesar de sua relevância inconteste. Em paralelo, iniciei as sessões de hidroterapia, quase sempre na piscina, mas eventualmente no solo, com a focadíssima Karen, fisioterapeuta que sabe tudo da profissão. Deverá vir, ainda, o agendamento de fisioterapia convencional e, talvez, terapia ocupacional e psicológica. 

Tenho vida fora da AACD, claro. Na segunda-feira passada, dia 28 de outubro, confirmou-se o que eu esperava com alguma ansiedade: fui selecionado para o Mestrado em Política e Economia da Cultura e Indústrias Criativas, uma iniciativa do Pós em Economia da UFRGS em parceria com o Itaú Cultural. Foi um golaço, porque estou há tempos distante da academia, nunca cursei Economia, nem mesmo fiz trabalho de conclusão ao me formar, no jurássico julho de 1988. Mas acontece que tive um insight: a ideia de um programa de TV sobre a relação de algumas cadeias produtivas gaúchas com a cultura e a identidade de nosso Estado, como alternativa de fomento ao desenvolvimento, não poderia ser também um belo projeto de pesquisa, a partir da análise de nossa realidade por meio do conceito de Arranjos Produtivos Locais (APLs)? Será que fazia sentido? A banca do mestrado achou que sim, e juntamente com meu currículo profissional, mais um vídeo explicando a minha motivação para o curso, e, ainda, a boa nota na prova de 100 questões, com base em uma bibliografia com oito indicações, resultaram em nota final 7,05. Entrei pelas ações afirmativas, mas a nota mínima para a concorrência ampla era 7, ou seja, minha coragem e ousadia foram bem-sucedidas. Agora, vem a outra parte, que é estudar horrores a partir de julho de 2023 e ir, uma vez a cada trimestre, a São Paulo, para assistir aulas presenciais durante uma semana.

Eu vou de cadeira monobloco, de órteses, com bengalas, com andador, ou todas as alternativas anteriores? Não faço a menor ideia… Mas eu vou! E levo junto, para presentear meus colegas, alguns exemplares do meu livro de estreia na poesia, que se chama Gaveta de Guardados, 140 páginas, capa com concepção de layout e foto minha, ilustrações da Hannah Beineke, projeto gráfico e editoração de Gilson Rachinhas e texto de apresentação da maravilhosa e generosa Simone Rasslan. Na pré-venda, por R$ 40. Chamem no whats, que explico como adquirir: 51.99844-0652.

Por fim: eu estou vivo? Muito vivo. Talvez como jamais estive. No primeiro semestre, ajudei a conceber e sou gestor de conteúdo e apresentador de um podcast sobre futebol, bebidas e assados. Aprendizados, novas experiências. Há poucos dias, fiz um freelancer, trabalhando com jornalistas da geração da minha filha, e foi lindo. Last, but not least: sigo fortemente motivado a seguir morando nesse país repleto de contradições e enraizado nas desigualdades, agora que o obscurantismo foi derrotado. Que tenha sido apenas um lamentável e doloroso hiato histórico. Há muito por reconstruir, recomeçar.

É por isso que, cada vez mais, o slogan que adotei ainda em 2020, quando da minha queda e fratura, inspirado no magistral e emocionante samba-enredo da Mangueira sobre a escravidão, apenas se renova: 

Sempre em frente: enfrente! Porque é na luta que a gente se encontra…

Adicionalmente, adotei um outro mantra, e uso ambos, tudo junto e misturado:

Quando menos ando, mais caminho – mais caminhos.

Foi um privilégio estar na companhia de vocês. Até as próximas!

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