Crônica | Parêntese

Nathallia Protazio: Interfone

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Nathallia Protazio: Interfone Qual o valor de uma palavra? Quem tem mais direito de julgá-lo? Quem profere a palavra? Quem a recebe? Ou talvez quem sofre de alguma maneira a maior consequência? Considerando que fosse realmente possível identificar uma relação causal entre uma palavra e uma ação. Como, então, mensurar as consequências vividas por aquele que fala e aquela que ouve? Sábado passado fiz o que tenho feito em todos os dias de folga dos últimos dois meses: fiquei em casa. Nada muito especial, coloquei a faxina em dia e esperei a noite chegar escutando música. Aqui escutamos música o tempo todo. Apesar de algumas preferências, tem espaço pra uma multidão de artistas. De Beth Carvalho a Tove Lo. De Liniker a Pearl Jam. Artista que faz arte. As épocas desfilam pela bancada da cozinha navegadas pelas melodias. Fui dormir embalada pela Audra Mae. Não sei quanto tempo depois o interfone toca. Toca de novo. E de novo. Penso que talvez o namorado da minha amiga tenha ficado sem bateria para avisá-la que estava chegando do trabalho. Ao final deste pensamento curto e sonolento o interfone não para mais de tocar. Chego a rápida conclusão que não é ele. O Ahama não seria capaz de acordar a casa toda neste desespero. Levanto e passo a mão automaticamente pela mesinha de cabeceira. Olho o celular. 4h26. Abro a porta do meu quarto. Ela dá pro corredor, e a extensão parece intensificar o barulho. Aquilo começa a ser insuportável. Minha amiga encontra-se ao pé do interfone, tão assustada quanto eu, tira-o do gancho me fazendo sinal de silêncio, e coloca no ouvido. Eu chego até a porta da sala sentindo o frio da madrugada subindo pelas minhas pernas mais lento que o medo, esqueci de calçar os chinelos. Ela não escuta ninguém do outro lado, porém, uma vez que nossa casa está vazia daquele barulho, podemos perceber que outros interfones estão tocando no prédio. O pânico começa a tomar o lugar do medo. Marcela tenta colocar o interfone no gancho de novo, com o cuidado de quem segura uma bomba, mas, quem quer que seja que está lá embaixo na entrada do prédio, mantém o dedo no botão. Tão logo o contato é feito, o barulho volta com tudo. Decidimos em silêncio deixar o interfone fora do gancho e ligamos pra polícia preocupadas. Se alguém violento entrar no prédio, o porteiro está lá embaixo sozinho. Há três semanas ele saiu da quarentena. ‘‘É realmente indispensável que todos voltem a trabalhar, afinal estão sendo pagos’’, disse aquela que gostaria de ser a síndica do prédio. Agora ele está lá na portaria sozinho, no meio dessa confusão, com outras ameaças além do vírus. A polícia disse que vai mandar uma viatura. Ainda estão tocando os outros interfones e nossa porta está trancada. Criamos mil teorias, e como bandido não costuma tocar campainha, concluímos que deve ser alguém confundindo o prédio. Deve tá louco de droga e só lembra que mora num quarto andar. Como já chamamos a […]

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Qual o valor de uma palavra? Quem tem mais direito de julgá-lo? Quem profere a palavra? Quem a recebe? Ou talvez quem sofre de alguma maneira a maior consequência? Considerando que fosse realmente possível identificar uma relação causal entre uma palavra e uma ação. Como, então, mensurar as consequências vividas por aquele que fala e aquela que ouve? Sábado passado fiz o que tenho feito em todos os dias de folga dos últimos dois meses: fiquei em casa. Nada muito especial, coloquei a faxina em dia e esperei a noite chegar escutando música. Aqui escutamos música o tempo todo. Apesar de algumas preferências, tem espaço pra uma multidão de artistas. De Beth Carvalho a Tove Lo. De Liniker a Pearl Jam. Artista que faz arte. As épocas desfilam pela bancada da cozinha navegadas pelas melodias. Fui dormir embalada pela Audra Mae. Não sei quanto tempo depois o interfone toca. Toca de novo. E de novo. Penso que talvez o namorado da minha amiga tenha ficado sem bateria para avisá-la que estava chegando do trabalho. Ao final deste pensamento curto e sonolento o interfone não para mais de tocar. Chego a rápida conclusão que não é ele. O Ahama não seria capaz de acordar a casa toda neste desespero. Levanto e passo a mão automaticamente pela mesinha de cabeceira. Olho o celular. 4h26. Abro a porta do meu quarto. Ela dá pro corredor, e a extensão parece intensificar o barulho. Aquilo começa a ser insuportável. Minha amiga encontra-se ao pé do interfone, tão assustada quanto eu, tira-o do gancho me fazendo sinal de silêncio, e coloca no ouvido. Eu chego até a porta da sala sentindo o frio da madrugada subindo pelas minhas pernas mais lento que o medo, esqueci de calçar os chinelos. Ela não escuta ninguém do outro lado, porém, uma vez que nossa casa está vazia daquele barulho, podemos perceber que outros interfones estão tocando no prédio. O pânico começa a tomar o lugar do medo. Marcela tenta colocar o interfone no gancho de novo, com o cuidado de quem segura uma bomba, mas, quem quer que seja que está lá embaixo na entrada do prédio, mantém o dedo no botão. Tão logo o contato é feito, o barulho volta com tudo. Decidimos em silêncio deixar o interfone fora do gancho e ligamos pra polícia preocupadas. Se alguém violento entrar no prédio, o porteiro está lá embaixo sozinho. Há três semanas ele saiu da quarentena. ‘‘É realmente indispensável que todos voltem a trabalhar, afinal estão sendo pagos’’, disse aquela que gostaria de ser a síndica do prédio. Agora ele está lá na portaria sozinho, no meio dessa confusão, com outras ameaças além do vírus. A polícia disse que vai mandar uma viatura. Ainda estão tocando os outros interfones e nossa porta está trancada. Criamos mil teorias, e como bandido não costuma tocar campainha, concluímos que deve ser alguém confundindo o prédio. Deve tá louco de droga e só lembra que mora num quarto andar. Como já chamamos a […]

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