Operação Cais Mauá

O sorriso nos dentes da cidade

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O sorriso nos dentes da cidade O Cais na filmagem de A matadeira. (Arquivo: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Ben Berardi (Para Iran Rosa, que também perdemos para a pandemia)

Cada vez que retornava de uma viagem aérea (com a pandemia, tem de usar o verbo no passado quase remoto) tinha um momento que era o mais aguardado. Nunca poderia estar dormindo ou distraído. Era quando o avião ia além do Guaíba e fazia uma curva em retorno, onde nossa vista podia reencontrar os armazéns do Cais do Porto. Seus amarelos e carmim, suas paredes de alvenaria e portões gigantes de ferro, sem o muro, pois a manobra o tinha enganado fazendo a volta pelo outro lado, e ele não conseguia proibir meu olhar.

Aquele casario à beira do Guaíba parecia os próprios dentes da cidade, mostrados em um sorriso que comprovava o adjetivo do Porto, o Alegre. Tive algumas experiências inesquecíveis deste outro lado do Muro da Mauá. Tantos sequer percorreram sua rua interna calçada com paralelepípedos, que nem os da música do Chico. Dá tempo de repassá-las antes de aterrissar.

Quando o Sertão foi feito de sal: era o distante ano de 1994, e o Jorge Furtado me pediu alguns meninos em situação de rua que participavam de um projeto cultural nos nove periféricos Centros Comunitários da Prefeitura. Ele filmava A Matadeira, um naco de Os Sertões, do Euclides da Cunha, e queria que as crianças do seu Canudos fossem representadas por seus similares porto-alegrenses. Também eu fazia um personagem, um dos guardas que leva a Matadeira do Rio de Janeiro até Canudos para bombardear o Conselheiro e seus seguidores, e suas crianças.

Em A Matadeira, um trecho do livro Os Sertões resultou no filme de Jorge Furtado. (Foto: acervo Casa de Cinema)

Quando cheguei no Armazém que fica ao lado daquele que é ocupado pelos Bombeiros, encontrei Os Sertões à beira do Guaíba. O sal grosso que cobria o piso do armazém/cenário transformava-se em areia do sertão pelo olho do artista. Andamos a cavalo, travamos batalhas, e fizemos o sino de Canudos ser derrubado pela Matadeira, tudo dentro daquele Armazém do Cais Mauá. Sim senhora, é como lhe digo: dentro de um Armazém desses, a arte faz caber um universo.

A quase Casa do Almirante Negro: há muito tempo, nas águas do nosso Guaíba, o Dragão do Mar reapareceu. Assim como na bela música do João Bosco e do Aldir Blanc, o marinheiro João Cândido, o Almirante Negro, ganhava uma outra homenagem. 

O bravo, que liderou a Revolta da Chibata, gaúcho de Encruzilhada do Sul, recebia uma homenagem tardia na Assembleia Legislativa, com a presença de sua filha, Dona Zelândia, de 78 anos, que veio do Rio de Janeiro prestigiar. Mas aquilo era pouco. Dali ela foi levada até o nosso Cais Mauá, um ambiente que serviu de cenário para grande parte da vida de seu pai. Ali, foi descerrada uma placa, junto àquele portão que fica entre o Pórtico e a Usina (enquanto essa ainda consegue estar de pé!) do Gasômetro. Na placa estava escrito que, em um daqueles lindos armazéns, seria abrigado o Museu João Cândido – o Almirante Negro.

O Museu nunca foi além da placa, que, por sua vez, foi roubada. Mas também ultrapassou a placa, sim. Na medida em que sonhamos ter um Museu temático, sobre um personagem épico e poético de nossa História, podemos vê-lo. Podemos ver ali, agrupados, os pertences e os relatos das bravas ações que esse personagem promoveu. Podemos ver a história dos mares, mas também a do nosso Guaíba, onde personagens como ele tanto partiram, chegaram, viveram e fizeram vida ao seu redor. É como lhes digo: a Arte faz rodar o tempo, num Armazém daqueles.

A primeira sede do Museu de Arte Contemporânea: quando o Gaudêncio Fidelis criou o MAC, fez lá dentro da Casa de Cultura Mario Quintana, pois não tinha sede para colocar as obras que vieram formando seu acervo. Era um museu sem casa, mas foi criado. No mesmo período em que foi sonhado o Museu do Almirante Negro, o MAC ganhava sua primeira casa fora da Casa de Cultura Mario Quintana. Em um Armazém do Cais Mauá.

E o MAC começou a ser feliz, ali. Era época da tal de Democracia Participativa e…  não, não estou inventando, teve uma aqui, sim. 

Bem, voltando àqueles tempos, até eu fiz o desenho de uma exposição realizada ali, naquele MAC, dentro de um dos Armazéns. Aquele pé-direito gigante permitia expor obras de enormes alturas. Ao mesmo tempo em que toda aquela área sem paredes era capaz de abrigar vários cenários ao mesmo tempo. Uma galeria gigante, mas que generosamente podia ser recortada com divisórias, permitindo a coexistência de diversas galerias simultâneas.

Bienal do Mercosul: Armindo Trevisan, em 2005. Foto: Tânia Meinerz
Bienal do Mercosul: Gilles Lipovetsky, em 2005. Foto: Tânia Meinerz

E a melhor parte: a gente podia limpar os olhos com a visão do Guaíba entre uma exposição e outra. Ou aproveitar as mesinhas com cadeiras colocadas entre ele e os Armazéns, para trocar aquela conversa, combinar uma parceria que jamais se realizaria, ouvir um sax que chora na hora em que a terra cora. O fim de tarde entre obras de arte, as que a gente faz, e as que já estão feitas – e permanecerão se a gente não fizer merda. As Artes já puderam, e eventualmente ainda conseguem encontrar-se com a arte do nosso Cais, aquele casario que parece uma pintura, uma tatuagem que identifica o corpo de nossa cidade. Que faz com que ela seja Porto Alegre, e não outro lugar qualquer.

A grande ocupação: bem, bem, em 2005 era a quinta edição do Fórum Social Mundial, e seria a derradeira em Porto Alegre, para onde ele retornava depois de um hiato em Mumbai, na Índia. E nos Armazéns do Cais… Bem, nos Armazéns do Cais, o mundo todo estava ali. 

Dali, da Usina, quando ainda era um Centro Cultural cheio de vida e atividades, até o Pórtico e seus vitrais escandalosamente lindos, todos os Armazéns foram ocupados. Também a rua interna, aquela de paralelepípedos que eu falava, recebeu divisórias de octanorme, e aquelas 155 mil pessoas inscritas, aquele monte de gente de 135 países.  Aconteceram ali muitas Mesas Temáticas, como a da Palestina, a da invasão do Iraque… até o Danny Glover passava em animada conversa com o Gil.

E o Armazém do Pórtico, que já foi utilizado pra Feira do Livro, lembram? Um mês antes do Fórum começar, a gente convidou o Snuff Puppets, um grupo australiano de bonecos gigantes, música, artes visuais, para vir fazer uma oficina com nossos bonequeiros e a partir dela criarem os bonecos gigantes que fariam a abertura do FSM.  E assim aconteceu. Os Snuff Puppets se juntaram com nosso pessoal bonequeiro, que tem toda uma história linda, e trabalharam todo o mês naquele Armazém, com bambus, panos, arames, fita crepe (nunca esqueçam a fita crepe!) … e fizeram os bonecos que saíram do Cais Mauá para o mundo.

Se a arte ocupar aqueles Armazéns, ela faz caber todo um universo, rodar o tempo, e ainda o emancipa economicamente. E quando a gente voltar a viajar, no retorno, após aquela curvinha marota e proposital, nós os estaremos vendo. Os dentes da Porto Alegre sorridente, para nós e quem mais vier.


Ben Berardi é Gestor Cultural, Curador e Antropólogo. Trabalhou como ator em Cinema, com Jorge Furtado, e Teatro, onde também foi roteirista e diretor. Trabalhou em música em espetáculos de Vitor Ramil. Tem o livro de poemas “Um Pelo  na Pedra de Gelo”  no prelo e, atualmente, é Vice-Presidente do Instituto  Zoravia Bettiol , Diretor da Associação de Artistas Plásticos Chico Lisboa e Coordenador Adjunto do Colegiado Setorial de Artes Visuais do RS.

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