Operação Cais Mauá

“Deixem as áreas públicas serem públicas”

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“Deixem as áreas públicas serem públicas” O Cais em 2007. Foto: Tânia Meinerz

Entrevista com Adriana Schönhofen Garcia

Adriana Schönhofen Garcia conta como funcionou o edital de seleção do projeto Cais Mauá e analisa com esse espaço público pode acrescentar qualidade de vida a Porto Alegre.

Natural de Belém do Pará, Adriana Schönhofen Garcia é  Mestre em Arquitetura com especialização em Paisagismo (Florida International University), Mestre em Engenharia de Produção (UFRGS), Engenheira Civil (UFRGS) e Técnica em Edificações (Parobé). Atualmente, é presidente da Schönhofen Enlightenment LLC, em Miami Beach, FL – EUA, empresa dedicada à aplicação do valor da Arquitetura, Urbanismo e Design de Interiores a projetos e à difusão destes princípios. Adriana iniciou sua carreira como engenheira civil autônoma em Porto Alegre em 1992. Em 1997 mudou-se para a Houston, Texas, e desde 2001 vive no sul da Florida, tendo retornado a Porto Alegre por um período de três anos, entre 2011 e 2014. Trabalhou como consultora/colaboradora para o Center for Community by Design do American Institute of Architects (AIA) em Washington DC – EUA, trazendo ao Brasil o primeiro treinamento do AIA em ouvidoria da comunidade em projeto de cidade. Em 2017 foi eleita Alumna destaque do mês da School of Architecture da Florida International University pelo trabalho junto à AMACAIS e defesa do Cais do Porto. Foi Professora e Diretora Acadêmica de cursos em Arquitetura e Design de Interiores em Miami (Miami Dade College e Art Institute Miami University of Art and Design). Adriana Schönhofen Garcia é membro ativo da AMACAIS desde sua fundação.

Parêntese – Como foi sua atuação no edital de seleção de projetos para a revitalização do Cais, em 2009-10?

Adriana Schönhofen Garcia – Em 2010 eu estava em Miami quando li na Zero Hora online que haveria um edital para a “revitalização” do Cais do Porto. Minha reação foi de choque, pois não houve ouvidoria efetiva, sistematizada e abrangente da população. O processo de estudo e redação do edital foi autoritário, de gabinete e, essencialmente, comercial. Havia muitos erros, como falta de referência de legislação internacional que definisse claramente o que era esperado, como acessibilidade universal e LEED. Além da parte técnica deficiente, havia questões legais que muitos anos depois foram expostas na na mídia e em processos que ainda correm no sistema judiciário. Como não bastasse, o peso de Arquitetura e Urbanismo no edital era irrelevante; pouco importava a qualidade do projeto, e muito menos o que a população desejava; venceria quem pagasse mais. As imagens do estudo arquitetônico eram rudimentares. Como lecionei cadeiras de Projeto, vi que o nível apresentado era de aluno de primeiros semestres.  A minha decisão de participar da licitação veio da sensação de exclusão e dos absurdos que vi no processo todo. Me senti excluída como cidadã, não convidada a participar de decisões importantes da cidade. Vivo nos Estados Unidos há 21 anos; estou acostumada à participação e envolvimento das pessoas nessas questões. Jamais um edital destes teria sequer existido aqui em Miami. Em 2010, eu recém tinha concluído meu mestrado em Arquitetura. Juntei dois colegas da faculdade e, através deles, conseguimos engajar um dos maiores escritórios de arquitetura de Miami a participar. Consegui a construtora em São Paulo, mas não tivemos tempo de fechar acordo com a empreendedora. O prazo para montar o grupo de trabalho foi muito curto (o que também pode ser considerado um fator excludente). Além disso, os valores de comprovação de recursos foram muito altos (o que nem mesmo o “vencedor” nunca comprovou*). Não conseguimos fechar o time de empresas e nem o valor exigido a tempo de participar. 

[*nota do entrevistador: a empresa vencedora, Consórcio Cais Mauá, jamais obteve ou apresentou a Carta de crédito no valor de R$400 milhões, exigida no edital, e esta falha crucial, em exigência que eliminou concorrentes no edital, foi estranhamente anuída pela Procuradoria Geral do Estado no Governo Sartori, quando examinou denúncia contra a empresa]

P – Como imaginas o resultado ideal do processo de revitalização do Cais?

ASG – Antes de falar do resultado, temos que falar do processo para atingi-lo. Apesar do atual governo ter as melhores intenções de “revitalizar” o Cais, o processo está, novamente, ultrapassado e autoritário. Os mesmos erros estão sendo cometidos. Antes de qualquer estudo econômico, o governo tem que ouvir a população. E não através de ouvidoria e nem questionários como foi feito no passado. Há metodologias muito mais sofisticadas e representativas. 

Eu trouxe ao Brasil em 2014 o Regional and Urban Design Assistance Team (R/UDAT) um processo do American Institute of Architect (AIA), que existe há mais de 50 anos no Estados Unidos. O processo concentra em quatro dias a população, lideranças políticas e comunitárias com um time de consultores voluntários nas áreas de interesse do projeto; geralmente são arquitetos, urbanistas, engenheiros de transporte, economistas, paisagistas, etc. A população é ouvida, literalmente ouvida em mesas redondas e também esclarecida sobre suas próprias escolhas e necessidades. É como se você fosse ao médico, ele/ela vai te ouvir, fazer os exames e, depois, traçar o diagnóstico e acompanhar o tratamento. 

O time de consultores do R/UDAT ouve, examina e traça o plano de necessidades e o plano de ação para a implementação. Não só o plano é estabelecido como há acompanhamento posterior. O resultado não se detém ao desenho, mas à viabilidade financeira a longo prazo e como obter os recursos para implementá-lo. 

Apesar de eu ter trazido esse procedimento primeiro para Porto Alegre, o Rio Janeiro, através do IAB-RJ levou o processo adiante, criando workshops e uma ouvidoria. Juntaram forças com  o CAU/BR, o CAU/RJ e apoio de universidade americana e brasileira, juntamente com o Consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro. 

Portanto, a estratégia do governo do Rio Grande do Sul deve ser utilizar esses recursos do AIA, ou outro semelhante, testado e pro bono, a preço de custo apenas, e realmente ouvir a população de Porto Alegre da maneira certa. 

Não sou eu que vou dizer como a revitalização deve ser. As pessoas de Porto Alegre é que devem imaginá-lo. Eu tenho a minha própria visão, mas ela não é mais importante do que outra pessoa.

Eu imagino um Cais como parte de um parque linear, em toda a extensão não ativa do Cais, conectando-se à Orla do Guaíba até Ipanema. Porto Alegre poderia ter uma rota de caminhada meândrica acompanhando a costa, entrando e saindo sobre o Lago Guaíba. 

Sonho com a volta da praia, do uso do Guaíba para atividades e esportes aquáticos, como era a cidade, onde jogos de polo aconteciam nas escadarias do Cais na década de 1920; onde piscinas flutuantes delimitavam o espaço para natação. Como ex-nadadora, a relação com a água e espaço público é essencial. Frequento duas piscinas públicas aqui em Miami Beach, ambas localizadas em parques, que reúnem a comunidade de nadadores. A sensação de pertença à comunidade, as relações que se constroem, não existem em clube privado. Um dia conheci uma bailarina do Miami City Ballet que fazia exercícios de sapatilha na água para curar uma torção no tornozelo. A riqueza das interações é incomparável.

As pessoas de Porto Alegre devem exigir a despoluição do Guaíba, assim como Chicago fez. E, se isso não for possível de imediato, hoje temos tecnologias para instalar piscinas gigantes e naturais na beira dos rios e lagos, isolando a parte poluída. A Rua da Praia tem que voltar a ser Rua da Praia… e o ano todo podemos controlar a temperatura destas piscinas, sendo aquecidas no inverno. O acesso à água irá mudar a vibe de Porto Alegre, totalmente.

E o Cais, na minha opinião, deve ser um espaço flexível, como já o era antes de ter seu acesso fechado à população. O Cais, na verdade, não precisava de revitalização, precisava apenas de restauro, pois já estava vivo. Engessar o Cais com restaurantes, salas, teatros, ou qualquer outra atividade fixa é limitar o seu uso. Um espaço flexível acomoda diversas funções, é mais útil e mais resistente às variações dos ciclos econômicos e casos extremos como uma pandemia, pois pode acomodar qualquer tipologia, até mesmo um centro de vacinação ou hospital temporário, se necessário. A Feira do Livro e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul eram suas mais glamorosas ocupações e devem voltar a utilizá-lo.

Imagino um Cais com todos os guindastes repostos como antes. Nem que sejam réplicas: eles têm o valor de conjunto de repetição como elemento decorativo e histórico. A quantidade de guindastes revela a importância do Porto. Não eram só quarto. As gerações futuras têm que ter essa informação, não podemos minimizar um fato histórico, não podemos mutilar a história. Os guindastes devem voltar.

Imagino um Cais com paisagismo de excelência, com plantas nativas; muita, muita flor e plantas que atraiam borboletas. Imagino um Cais sem muro. O muro tem que cair e ser substituído por outro sistema de proteção ou método de reconstrução de danos de enchente. Miami não tem muro, o que seria uma aberração, mesmo estando sujeita a enchentes várias vezes por ano a cada furacão. A frequência das enchentes em Porto Alegre não justifica o muro. Aqui as enchentes são vistas como uma questão de seguro de imóveis e não são tratadas com barreira física. Sofreu danos, o seguro paga, o seguro protege, se reconstrói. Se aceita a enchente, se vive com ela. Ainda que existam estudos de se fazer diques de contenção no mar, isto ainda está longe de acontecer. Porto Alegre poderia adotar a política de seguro. É uma questão matemática, fazer a conta e ver se não estamos nos preocupando com um problema que talvez nunca venha a existir ou numa frequência de dezenas de décadas.

Imagino a Avenida Mauá como um boulevard, de baixa velocidade, com canteiros centrais e as mesmas palmeiras que temos nas Avenidas Oswaldo Aranha, João Pessoa, Getúlio Vargas, Antônio de Carvalho e José de Alencar. Imagino a volta da praça ao lado do Mercado Público e a destruição do terminal de ônibus brutalista, conectando o Cais em suas praças originais. Temos que voltar no tempo em que o centro era romântico, com chafarizes, cafés e praças. A organização e a beleza urbana melhoram as relações humanas, contribuem para redução da violência.

Imagino a reconstrução de uma replica do pavilhão das tesouras, que foi destruído por um incêndio.

Imagino uma marina. Vivo perto do Porto de Miami e da Marina de Miami Beach. Esta última é o meu lugar favorito para caminhar. Há uma vida peculiar nas marinas; só observá-las já adiciona riqueza ao dia-dia. A mistura de classes sociais e econômicas é possível e é benéfica. 

E, por fim, imagino que após a ouvidoria, tenhamos uma competição internacional de arquitetura, urbanismo e paisagismo, colocando Porto Alegre no mapa internacional de excelência em design urbano. Imagino que as diretrizes dessa competição sejam de reconstruir o auge do espaço urbano do centro em Porto Alegre. Na minha opinião, a comunidade acadêmica de arquitetura e urbanismo e história de Porto Alegre deve ter participação ativa na definição dessas diretrizes. Reconstruir o que foi destruído, juntamente com a ouvidoria da comunidade em suas necessidades hoje.

P – Quais os recursos internacionais que conheces para apoiar a cidade e o estado a planejar e realizar este projeto?

ASG – Como já mencionei em 2010, o problema do Cais não é dinheiro, é a insistência em misturar uma necessidade pública com as ambições privadas. O Cais não tem que dar lucro, tem que ser economicamente viável, mas não deve ser objeto de um plano de retorno de investimentos. Não precisamos de investidores, precisamos de doadores. O Cais precisa de filantropia e um grupo de associados e eventos que o mantenha, como ocorre em museus, galerias de arte, sítios históricos, etc. O Governo do Rio Grande do Sul deve buscar profissionais especializados em levantar fundos de doação. Aqui nos EUA chamamos de Fundraisers. 

Porto Alegre tem pessoas que poderiam obter os recursos para o restauro do Cais, que na realidade, não representam um valor alto em termos de valores mundiais. A Forbes recentemente publicou um artigo que US$ 450 bilhões de dólares foram doados no ano de 2019 internamente, só nos Estados Unidos. Em 2020 foi bem menor, US$ 49.5 bilhões. Entretanto, fora a pandemia, o valor de doação disponível gira em um trilhão de dólares, só considerando como doador os Estados Unidos, e como recebedor o mundo inteiro. Há empresas como a Foundation Directory Online, especializadas em catalogar fundações doadoras, pois muitas fundações são pequenas e nem sequer têm websites. Portanto, um fundraiser experiente saberá buscar esses recursos.

Somado a isso, terra pública não se vende e não se aluga por décadas. Seattle compra terra privada para tornar pública. Sigam o exemplo de cidades de vanguarda, não de retaguarda.

P – Qual o papel das empreendedoras imobiliárias e investidores interessados no Cais?

ASG – O Cais e as áreas públicas são essenciais para adicionar valor qualitativo de vida à cidade. Ou seja, uma cidade com maior valor de qualidade de vida irá atrair pessoas e recursos para si própria. Em questões imobiliárias, o que realmente define o valor de um imóvel é sua localização. Dois imóveis idênticos terão valores muito diferentes dependendo do bairro em que se situam, da rua, da posição da quadra, em que entorno urbano, que serviços dispõe, etc. 

Entretanto, está faltando entendermos que o valor último proporcionado pela localização é a própria cidade. Um mesmo empreendimento na melhor área de Porto Alegre não atingirá o mesmo valor por metro quadrado se estivesse numa mesma área equivalente em Miami. Ou seja, Miami, Miami Beach, Coral Gables, as cidades de maior valor aqui no condado de Miami Dade valorizam seus empreendimentos pela cidade em si. 

Porto Alegre não tem valor suficiente, como cidade, para valorizar os imóveis na mesma proporção. Portanto, os empreendedores e investidores devem investir na qualidade de vida de Porto Alegre como um todo, como doadores, não como investidores, porque somente quando Porto Alegre tiver atingido uma qualidade de vida capaz de competir com as melhores cidades do mundo (e não estou dizendo que Miami o seja, Miami Beach talvez), o valor de seus investimentos imobiliários será muito maior. 

Nessa lógica, não é construindo em terra pública, na área do Cais, que seus retornos serão maiores, mas sim construindo ou reformando as estruturas existentes no outro lado da Avenida Mauá, e doando recursos para a criação deste parque linear em todo o Cais. Construir na área do Cais é o mesmo que se Chicago colocasse prédios nos seus diversos parques ao longo do Lago de Michigan. Não faz nenhum sentido. O parque é que eleva os valores dos imóveis, que os torna desejáveis, que torna a cidade melhor. Portanto, se querem ter lucros além do típico valor para Porto Alegre, deixem as áreas públicas serem públicas e doem o máximo de recursos para que elas tenham projetos de qualidade urbana e paisagística internacional.

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