Operação Cais Mauá

Uma cidade, um porto, um cais

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Uma cidade, um porto, um cais Cais, em 2013. Foto: Tânia Menerz

Aquele era o dia tão sonhado. Levantei-me, antes que minha mãe me chamasse, e corri para a escotilha do camarote. Esperava ver Porto Alegre, a cidade que povoara meus sonhos nos últimos meses. Fiquei um pouco decepcionada, a imagem surgia distante e pouco clara. Soube depois que o que parecia chuva fina misturada com fumaça era chamado de cerração, e que o navio só atracaria no porto quando ela se dissipasse, o que deveria acontecer por volta das dez horas da manhã. Quando tirei meu pijama de flanela feito pela tia Mariquinha, lá em Manaus, senti uma sensação estranha. Meu corpo tremia todo e um arrepio levantava os pelos dos meus braços e pernas. Fiquei apavorada pensando que estaria com febre. Sarampo talvez. De novo? Se fosse isso não me deixariam descer do navio. Minha mãe, ao ver-me sair do banho toda encolhida e batendo queixo, percebeu meu desconforto e esfregou a toalha com força por todo o meu corpo. Enquanto me secava, dizia-me que aquilo iria passar assim que eu vestisse a roupa, era frio. Frio… Isso era uma sensação nova para mim.

Lá pelo meio da manhã o sol apareceu forte como que por mágica e a tal cerração desaparecera. Achei estranho que, mesmo com aquele sol lindo esparramado no céu, eu não sentisse calor e continuasse a ter ligeiros tremores. Talvez fosse a febre mesmo. Mamãe tinha me vestido com um vestido de faille azul com pequenas rosas arrematando o lugar onde é preso o cinto de veludo que envolvia minha cintura e ia terminar em um enorme laço nas costas. Reclamei muito quando ela me calçou um par de meias grossas e cinzentas que me chegavam ao joelho e me pinicavam toda. Também não gostei daquele casaco que me parecia horroroso, igualmente cinzento e com uma pele azulada em volta do pescoço que fazia cócegas e provocava espirros. Esperava que em Porto Alegre eu não tivesse que andar sempre assim.

Quando a sirene do navio tocou anunciando que nos aproximávamos da terra, soltei a mão de minha mãe e corri para o convés. Ali estava a cidade. Do meu ponto de observação, parecia uma ilha cheia de edifícios, como os do Rio de Janeiro, não tão altos, mas maiores que os poucos que havia em Manaus.

Desembarcamos. Meus tios e primos nos aguardavam no cais. Quase morri de rir ao ver meu tio Alfredo e o primo Joaquim com enormes casacos que iam até abaixo do joelho. Parecia roupa de mulher. Saímos pelo portão central e através do gradil cheio de arabescos podíamos ver uma bela praça na qual se enfileiravam os carros de aluguel. Praça da Alfândega, disse o motorista, que continuou orgulhosamente mostrando os lugares mais bonitos. Ainda dei uma última olhada para o porto e acenei para o Araranguá, um navio que tinha sido nossa casa por oito dias, desde o Rio de Janeiro, e pertencia à frota da Companhia Costeira de Navegação, que fazia regularmente o transporte de passageiros e carga. Era menor do que os vapores do Lloyd que percorriam o trajeto Manaus-Rio. Ouvi falar que tínhamos que vir em um navio de pequeno porte porque o cais da capital gaúcha não comportava grandes calados.

Nas semanas que se seguiram à nossa chegada, foi um mundo de descobertas. Morávamos em um bairro que se chamava Floresta, mas que tinha pouquíssimas árvores. Em compensação havia o Cine Colombo e o Ipiranga e não perdíamos a matinée do domingo. Às vezes minha mãe pegava o bonde elétrico e íamos até o Cinema Orfeu, na esquina da Cristóvão Colombo com a Benjamin Constant, perto da praça que tinha um bebedouro para cavalos, muito usado pelos carroceiros. Um dia pegamos o bonde até o Mercado e de lá a camionete Maracanã até a Praia de Belas. Fomos pela Avenida Borges de Medeiros e fiquei matutando se aquela rua que passava sobre o viaduto não poderia despencar quando passavam os carros em cima. Vi pela primeira vez o Cine-Teatro Capitólio, onde mais tarde daria muitas risadas com os filmes do Mazzaropi. Pouco depois a avenida terminou em uma curva e do lado direito víamos as areias brancas da praia. Era a Praia de Belas. Não vi as belas, elas deviam estar todas do outro lado, lá no Colégio Pão dos Pobres, na missa que era celebrada em uma capela dentro do colégio.

Quando, anos mais tarde, eu e mamãe deixamos a casa do tio Alfredo, fomos morar na Borges de Medeiros, bem perto do Capitólio e do Colégio Pão dos Pobres. A capela ficara pequena e nessa época construíram a nova Igreja de Santo Antônio, e o aterro que acabou com a praia e empurrou para longe o rio Guaíba. Acho que devem ter posto areia no porto, também, porque os grandes navios deixaram de chegar. Talvez tenham empurrado o rio pra o lado errado porque foi preciso fazer uma muralha circundando o cais para evitar inundações.  O rio também não é mais rio, agora chamam de lago.

Os cinemas da minha infância não existem mais. Viraram casa de bingo ou templo de alguma seita. Para segurança dos cinéfilos, os novos cinemas foram trancafiados nos gigantescos centros comerciais. Por incrível que pareça, carroças ainda circulam pelas ruas, mas não tem mais o bebedouro de cavalos, os bondes viraram peça de museu e a linha Maracanã que ia para o Menino Deus, que era o bairro classe média por excelência, desapareceu. como desapareceu a maioria dos bares e restaurantes da volta do Mercado.  O Treviso, que ficava aberto vinte e quatro horas e servia a melhor sopa de cebola de Porto Alegre e que tinha pendurada na parede a cadeira onde Francisco Alves, o Rei da Voz, sentara, fechou suas portas para sempre. A cadeira ainda está no Mercado Público, ao lado de um prato de porcelana com a fotografia do cantor, mas a parede é outra, é a parede do Gambrinus, contemporâneo do Treviso, mas que resistiu a investida do tempo e agora, com a decoração restaurada, ficou muito mais bonito, mantendo o serviço impecável. Não existe mais o restaurante Dona Maria, que abrigou a intelectualidade porto-alegrense por muitas décadas e onde comemorei meu aniversário de treze anos, sem crianças, e cercada pelos velhos poetas que tinham uma mesa redonda cativa no local, cuja despesa era literalmente pendurada em um prego na parede. Penso que, quando o número de pregos aumentou, o restaurante foi à gaita. Ou será que os poetas morreram?

Porto Alegre perdeu seu ar provinciano, mudou tanto que às vezes me perco nas suas ruas, nas minhas lembranças, nas minhas próprias mudanças. E todas as vezes que regresso de todas as tentativas de ir embora, ainda sinto a mesma emoção da primeira vez, quando cheguei aqui menina, pele arrepiada, coração batendo, curiosa para conhecer esta nova cidade.


Idalia Cardoso Coronel-Martins nasceu em Manaus (AM), em 1945. Em maio de 1955, chegou a Porto Alegre, cidade que a adotou. Formou-se em Magistério na Escola Normal 1º de Maio e graduou-se em Direito pela UFRGS. Foi professora, bancária e advogada. Colaborou para alguns jornais e revistas no Brasil e Estados Unidos. 

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