Operação Falero

Peixe vivo

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Peixe vivo

As pessoas querem saber: o que é preciso para escrever tão bem? Como um ex-auxiliar de pedreiro, ex-repositor de supermercado, ex-porteiro, ex-auxiliar de gesseiro, morador de vila, estudante de EJA, consegue dominar tanto a linguagem? O que todo mundo não sabe é que você lê e escreve faz é tempo. 

Embora você coloque Besta-Fera como o marco da sua conversão à leitura, eu penso que, para você, ler e escrever começou muito antes. Lembra quando você desenhava seus próprios mangás? Lembra que seus personagens eram os parentes e amigos? Ali, já era o Vila Sapo sendo gestado. Ali, já era você se apropriando da palavra para contar a sua história e a dos seus. Ali, já era o que Paulo Freire preconiza em Pedagogia do oprimido: o alfabetizado não é aquele que aprende a repetir palavras, mas aquele que diz a sua palavra e se assume como sujeito da sua história. 

Eu penso que ali nascia o desejo de construção de uma narrativa que incluísse a sua história e a dos seus. Talvez tenha sido isso que aquela professora do ensino fundamental não entendeu quando lhe expulsou da sala porque você cantou Racionais MC’s, lembra? Um gesto violento não só física como simbolicamente, para não restar dúvidas que ali não era lugar para esse tipo de narrativa. Talvez por isso você tenha se desencantado tanto com a educação formal. Talvez por isso a rodinha de pagode realizada na quadra do Julinho lhe atraísse mais do que as discussões em sala de aula. E talvez por isso você tenha abandonado a escola.

O que me surpreende é que você saiu da escola mas não parou de estudar. E o mais incrível:  montou a sua própria grade curricular que incluía desenho, cavaquinho, teclado, banjo, violão, programação de computadores e, claro, a escrita. Foi nessa época que você percebeu que para escrever bem precisaria dominar códigos e ferramentas. E você não queria escrever de qualquer jeito, queria ser best-seller, lembra? Foi debruçado sobre a gramática velha encontrada perdida em algum lugar do seu barraco que você descobriu o fascínio pelos sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que nos apoia, como diz Adélia. Por que escrever “invés” e não “em vez de”? E nessa busca você construiu uma pedagogia própria. E foram anos investindo em papel e caneta, anos tentando apanhar com a mão a palavra, esse peixe vivo que a muitos causa susto e terror. Foram anos de trabalho de carpintaria, artesania, até chegar no romance Os supridores e depois no Vila Sapo. E isso é tão freireano, é a própria pedagogia da autonomia colocada em prática. Eu penso que essa é uma das características principais da sua escrita: você e os seus como protagonistas de suas histórias, re-existenciando criticamente as palavras de seu mundo e dizendo a sua palavra. Adélia diz que quem entender a linguagem entende Deus, cujo filho é o Verbo. Eu penso que é essa a sua religião: a linguagem. 


Dalva Maria Soares é professora, doutora em Antropologia, autora de Para diminuir a febre do sentir, da editora Venas Abiertas.

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