Operação Sérgio da Costa Franco

Visão de bastidores

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Visão de bastidores

Em que cidade assistimos pela tevê o show dos Secos e Molhados em que o pai — preocupado em não estimular variações confusas aos filhos homens — admitiu que aquele crooner extravagante chamado Ney Matogrosso cantava muito bem? Terá sido num jogo com o Atlântico que vimos o goleiro do Ipiranga enlouquecer por ter sido chamado de macaco e cabecear um moirão do alambrado? Foi para vermos a chegada do homem na Lua, em 69, que ele comprou nosso primeiro aparelho de televisão? É comum que as relações longevas contemplem recordações imprecisas. Ainda assim, a pedido da editoria, ensaiarei algumas pinceladas sobre meu pai, Sérgio da Costa Franco.

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Em que cidade assistimos pela tevê o show dos Secos e Molhados em que o pai — preocupado em não estimular variações confusas aos filhos homens — admitiu que aquele crooner extravagante chamado Ney Matogrosso cantava muito bem? Terá sido num jogo com o Atlântico que vimos o goleiro do Ipiranga enlouquecer por ter sido chamado de macaco e cabecear um moirão do alambrado? Foi para vermos a chegada do homem na Lua, em 69, que ele comprou nosso primeiro aparelho de televisão? É comum que as relações longevas contemplem recordações imprecisas. Ainda assim, a pedido da editoria, ensaiarei algumas pinceladas sobre meu pai, Sérgio da Costa Franco.

Uma imagem insidiosa pipoca em minha memória: sentado eu sobre um monte de paralelepípedos, revejo-o à distância numa calçada de Soledade. Retorna da breve experiência do cárcere, em abril de 1964. Carrega uma maleta pequena e tem o paletó sobre o ombro. Traz um sorriso dúbio. Brutal experiência a que enfrentou. Sempre fora pacífico. Teve poucos rompantes violentos que eu lembre: com um gato insistente à hora sagrada do almoço e, bem mais tarde, com um torcedor colorado que o acertou com um saco de mijo num grenal em pleno Olímpico. O mais comum era vê-lo marejar os olhos com alguma poesia bem posta. Nos meses seguintes ao retorno do quartel, via-o com o corpo curvado sobre o rádio na temerosa espera das listas de cassações veiculadas pela A Voz do Brasil. “Em Brasília, dezenove horas…” Hora de calafrios.

Casarão de madeira da rua Emílio Grando, em Erechim (Acervo pessoal)

No casarão de madeira da rua Emílio Grando, em Erechim, pouco o víamos, pois se moldara a sua escrivaninha. Trabalhar com o passado havia se tornado mais saudável, e ali começara a renascer após o trauma sofrido. Talvez preparasse aulas para um novo exercício no magistério, crônicas para “A Voz da Serra” ou revisasse seu Júlio de Castilhos e sua época, livro que suscitou a visita de um brazilianist ao autor, num prenúncio da importância que adquiriria sua vasta obra de fundo histórico. 

Amante das comilanças regadas a vinho ou cerveja e dos ambientes simples, deliciava-se com as linguiças de pernil erechinenses ou levava-nos para comer mocotó junto à igreja São Pedro, sua única concessão ao catolicismo.  Uma vez só o vimos com andar trôpego, após uma churrascada, e fomos, então, advertidos com voz macia: “Não se ri do seu pai!”. Mas ele nunca nos deu motivos para escárnio. Ao contrário.

Formou família de gremistas. Desde cedo, levava-nos a ver os jogos de futebol do Pampeiro, em Soledade, ou do Ipiranga, em Erechim, ou, por fim, no Estádio Olímpico. Mas era muito ruim de bola. Vangloriava-se do poder de seus tostões apelativos e insistia em postar-se como zagueiro em frente à exígua goleira de um metro das peladas infantis, em que ninguém queria ser o arqueiro. Inaugurou então o seu afamado “tchã-bã”, que grunhia sempre que afastava uma bola bem endereçada.

Com filhos aos 90 anos. (Acervo pessoal)

Com cinco filhos, desenvolveu o invejável dom de desligar-se para sobreviver ao caos. Já em Porto Alegre, no apartamento da rua Venâncio Aires, escrevia crônicas diárias para o Correio do Povo em pleno living, em meio aos acordes de Rick Wakemann, Janis Joplin ou Pink Floyd, que eu gostava de escutar. Talvez esta experiência tenha sido definitiva para que voltasse a ter um escritório privado na casa adquirida na Medianeira, quando melhorou de posses. Mas juntos, pesarosos, ouvimos na mesma eletrola a carta de despedida de Salvador Allende, no golpe chileno de 1973.

Nunca tolerou piadas racistas ou degradantes. Em meu apoio, enfrentou uma decisão arbitrária do colégio em que eu estudava, e que adiaria em um ano o meu acesso à universidade, baseado apenas na confiança da palavra que lhe dei. Do mesmo modo, emancipou-me aos dezessete de idade, a meu pedido, para confrontar alguma exigência daqueles tempos duros de restrição de liberdades.

Dava-nos mesadas módicas para que aprendêssemos a usar o dinheiro com parcimônia. Ensinou-nos a poupar e a entender o tanto de vida e suor que se embutia em cada moeda de centavos. Tínhamos, na juventude, nosso Mujica particular, inclusive pilotando, também ele, o seu fusca azul-calcinha. 

Guiou-me pelo universo dos livros, ensinando-me o valor da boa literatura, que acabou por se tornar muito importante em minha vida. De Andersen a Lobato, de Kipling a Júlio Verne, de Simenon a Conan Doyle, de Maupassant a Jorge Amado e Vargas Llosa, de Garcia Márquez a Graciliano e Veríssimo, de Camus a Neruda e Drummond, de Tolstói a Dostoiévski, fez-me transitar por tantos autores que seria impossível nominar. Talvez tenha pecado na autoria feminina, como se vê pelo que me veio à lembrança. Falamos de desigualdades, de amor, solidão, desejo e sexo; de ideais e de liberdade; de dores e de esperança. Tudo através dos livros, ultrapassando, por esta via, os pudores, a timidez, as controvérsias ideológicas e intergeracionais.

Sua casa sempre foi parada segura para filhos, netos e outros parentes. Soube oferecer-me o ombro quando dos meus atropelos e esteve sempre a postos para socorros eventuais, fosse numa delegacia, no HPS ou na compra de um bem importante. Tivemos nossas desavenças e períodos de afastamento. Nem sempre foi tranquilo ser o filho de um luminar, como não deve ter sido fácil para ele criar cinco rebentos, tendo perdido o próprio pai aos seis anos. Diga-se, em seu favor, que ele nunca apelou ao elogio barato e à condescendência. Ainda que para cada um de nós tenha sido um pai diferente – era inevitável! -, conduziu-nos a todos, ao lado da companheira Nezinha sempre presente, para o caminho da simplicidade e da retidão, da valorização do caráter e da honestidade, do dar o melhor de si para cada tarefa. Legou-nos a devoção pelo conhecimento como maior patrimônio. Temos muito orgulho de quem ele é e tratamos de replicar estes valores recebidos, por respeito e gratidão. 

Do alto de seus 92 anos, mantêm-se lúcido e produtivo, oferecendo sua inteligência e bagagem cultural incomum em prol da coletividade. Vida longa a ele! 


Miguel da Costa Franco – Engenheiro agrônomo, bancário aposentado, corroteirista de Doce de Mãe e autor de Imóveis Paredes e Não Romance

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