Palíndromo

SóNós #4

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SóNós #4

LI, MAS AMO IDIOMAS A MIL.

Até aqui, reviramos a origem e a história dos palíndromos. Já sabemos que a palavra veio do grego e que o palíndromo mais antigo (com traduções dúbias) é em latim. Também vimos que a língua portuguesa é rica em possibilidades pra lá e pra cá. Agora chegou a vez de dar uma espiada na gigantesca cornucópia de idiomas do mundo. Como não dá nem para imaginar a imensidão palindrômica da babel que vivemos, vamos garimpar a palindromia das línguas neolatinas e de algumas não latinas próximas.

Claro que as línguas mais faladas e as de maior vocabulário podem render mais palíndromos que aquelas com menos falantes e nem tantos vocábulos. O que não quer dizer nada: sabe-se lá a riqueza palindrômica que se esconde nos indecifráveis palavrórios eslavos ou orientais, sem falar nos dialetos obscuros (para nós) de minúsculos países ou grupos étnicos quase extintos.

Para nós, ocidentais, é até fácil supor a beleza e o prazer que é palindromar em línguas com estruturas mais ou menos parecidas com o português. Talvez por isso mesmo os palíndromos poliglotas mais famosos e mais divulgados sejam em espanhol, inglês, francês, italiano ou alemão, por exemplo. Eis uma amostra grátis de nossos acervos particulares e do que a internet despeja no olho de quem se encanta com a forma e o som de palíndromos estrangeiros. A dublagem é nossa, com o help dos “translators” disponíveis.  

PALÍNDROMOS EM ESPANHOL

Começamos pelo castelhano, que é a língua oficial do CPI (Club Palindromista Internacional), com sede em Barcelona e mais de cem associados ao redor do mundo, entre os quais uma meia dúzia de brasileiros e, por enquanto, só esses dois gaúchos aqui da Parêntese.


(Um gigantesco e inigualável banco de palíndromos no idioma de Cervantes)

Espanhol é também a língua em que escreve o madrilenho Victor Carbajo, talvez o mais prolífico autor e certamente o maior antologista de palíndromos do mundo. A última versão eletrônica (em formato PDF) de seu livro ‘Palíndromos Españoles‘, disponibilizada no início de agosto, contém nada menos que 242.242 (!) palíndromos, sendo metade de sua autoria.

Na obra de Carbajo estão compilados alguns clássicos populares anônimos (os “ônibus de Marrocos” deles), como por exemplo:

Dábale arroz a la zorra el abad.

(O abade dava arroz à raposa.)

E algumas obras-primas como essa, de Luis Torrent:

Allí por la tropa portado, traído a ese paraje de maniobras, una tipa como capitán usar boina me dejara, pese a odiar toda tropa por tal ropilla.

(Ali, carregado pela tropa, trazido até essa área de manobras, uma garota de capitã me deixara usar boina, apesar de odiar toda a tropa por tal vestimenta.)

Dos muitos palíndromos de Carbajo,  selecionamos dois, publicados recentemente em seu perfil no Twitter:

¡Alucina!, calor usual clausuró la canícula.

(Alucine!, o calor usual encerrou o período de calor excessivo.)

¿Lameculos acá acaso luce mal?

(Ser bajulador aqui por acaso pega mal?)

Outro autor da maior relevância foi o argentino Juan Filloy (1894-2000) prolífico escritor e jurista, com 29 livros publicados e 21 inéditos, entre ficção e não-ficção. Sua obra Karcino (1988) é um tratado de palindromia e uma antologia pessoal com 2 mil palíndromos, mas algumas referências atribuem-lhe a autoria de até 36 mil. Exemplos exemplares:

Sólo diseca la fe de falaces ídolos.

(Apenas disseca a fé dos falsos ídolos.)

Eso lo dirá mi marido, lo sé.

(Isso é o que meu marido vai dizer, eu sei.)

Outro argentino (este nascido na Bélgica), o grande Julio Cortázar (1914-1984), no conto Distante, publicado no volume Bestiário (1951), fez de sua personagem Alina Reyes uma criadora de palíndromos. Mas Cortázar era fã de Filloy, mencionado diretamente no capítulo 108 de O jogo da amarelinha (1963), por isso supõe-se que os palíndromos de Cortázar/Alina na verdade são de Filloy:

Salta Lenin el atlas.

(Lênin salta sobre o atlas.)

Átale, demoníaco Caín, o me delata.

(Amarre-o, demoníaco Caim, ou me delate.)

Palíndromos de Merlina Acevedo
Extremamente produtiva, esta palindromista, poeta e enxadrista mexicana cria belos poemas no seu perfil no twitter. Um exemplo já basta:


Yo solo sería yo.
Duna y arena;
mi mar a mi manera:
arena y arrayán era,

en racimo y luz

aledaña del azul,
ala, coral.
Yo soy ave,
un oyamel,
la calle, mayo.
Nueva,
yo soy la roca,
la luz aledaña del azul.
Yo, mi carne,
arena y arrayán.
Era arena, mi mar a mi manera.
Ya nudo y aire solo soy.
(Eu sou apenas eu. / Duna e areia; / meu mar do meu jeito: / areia e amora era, / em cacho e luz / próxima do azul, / asa, coral. / Eu sou um pássaro, / um abeto / a rua, o mês de maio. / Nova, / eu sou a rocha, / a luz próxima do azul. / Eu, minha carne, / areia e amora. / Já fui areia, meu mar do meu jeito. / E agora sou apenas nó e ar.)


PALÍNDROMOS EM INGLÊS

Inglês é o latim do mundo globalizado, e é claro que há muitos palíndromos compostos na mais simples das línguas modernas, sem acentos, com muitas palavras curtas e podendo terminar em qualquer consoante.

Um dos mais conhecidos autores de palíndromos em inglês é o norte-americano Howard W. Bergerson (1922-2011), que em seu livro Anagrams and palindromes (1973) fez uma histórica defesa do palíndromo como gênero literário, compilando palíndromos de vários autores, e até composições poéticas de um certo Edwin Fitzpatrick, que teria vivido no século XIX. O truque é que Fitzpatrick nunca existiu, e os poemas palindrômicos a ele atribuídos eram do próprio Bergerson. Inclusive Edna Waterfall (1967), um poema de 35 versos e 1034 letras, que durante muito tempo foi listado pelo Guinness como o mais longo palíndromo em inglês.


Outro autor que merece menção é o poeta inglês James Albert Lindon (1914-1979):

Drab as a fool, as aloof as a bard.

(Monótono como um tolo, tão distante quanto um poeta.)

Did I do, O God, did I as I said I’d do? Good, I did!

(Eu fiz, ó Deus, fiz como eu disse que faria? Que bom, eu fiz!)

Um palíndromo clássico em inglês é o que homenageia a obra de John Frank Stevens (1853-1943), engenheiro responsável pela construção do Canal do Panamá, inaugurado em 1913. Stevens já havia morrido quando a homenagem foi publicada, em 1948, pelo matemático e professor inglês Leigh Mercer (1893-1977):

A man, a plan, a canal: Panama.

(Um homem, um plano, um canal: Panamá.)

Mas talvez o mais famoso de todos seja um palíndromo atribuído a Napoleão Bonaparte (1769-1821). Atribuição falsa, claro, porque não se imagina o imperador francês nascido na Córsega fazendo palíndromos em inglês para comentar sua própria esperteza ao ser exilado (1814) e depois fugir (1815) da ilha de Elba. Segundo o Quote investigator, o texto foi publicado pela primeira vez em 1848, no jornal Gazette of the Union, de Baltimore, por alguém que assinou apenas as iniciais J.T.R. De qualquer maneira, a graça da frase está em pensar que Napoleão poderia ter dito isso:

Able was I ere I saw Elba.

(Eu era capaz, antes de ver Elba.)


E Já que falamos em falsas atribuições, há um palíndromo em inglês que teria sido não só o primeiro de todos os palíndromos mas ainda a primeira frase, a primeira apresentação no primeiro jardim:

Madam, I’m Adam.

(Madame, eu sou Adão.)


(Não conseguimos descobrir o autor do cartum. Nem da frase.)

PALÍNDROMOS EM FRANCÊS

Depois do espanhol e do inglês, o francês é a língua mais palindromada. Romancistas, poetas, linguistas e artistas não resistem virar seu idioma ao avesso. Além dos notáveis, selecionamos também palíndromos de autores desconhecidos, mas nem por isso menos admiráveis.

(Georges Perec, uma curta vida dedicada à palavra e modos de usar) 

Le Grand Palindrome: o gigante Perec. Se houvesse um oscar ou nobel da palindromia, ninguém tiraria esse troféu do Georges Perec, 1936-1982, escritor, poeta e ensaísta francês. Sua assombrosa proeza, de 1969, com conteúdo inteiramente mitológico, contém 1.247 palavras e 5.566 caracteres. Como não dá para transcrever e na tradução se perderia o sentido, sinta o prazer de conferir Le Grand Palindrome no original. Ou confira nossa abusada tentativa em dois pequenos trechos. O começo:

Trace l’inégal palindrome. Neige. Bagatelle, dira Hercule…
(Trace o palíndromo desigual. Neve. Trabalho menor, dirá Hércules.)

E o final:
… Haridelle, ta gabegie ne mord ni la plage ni l’écart.
(… Megera, sua má gestão não atinge nem a praia nem o desvio.)

Outra importante palindromista francófona foi Marie Louise Lévêque de Vilmorin, 1902-1969, romancista, poeta e jornalista francesa. Noiva do aviador e escritor Antoine de Saint-Exupéry, ela se tornou eternamente responsável pelos palíndromos que cometeu:

À l’étape, épate-la!
(Na próxima parada, mostre-a!)

Lune de ma dame d’été, été de ma dame de nul.

(Lua da minha dama do verão, verão da minha dama de ninguém.)

Também teria sido palindromista bissexto o célebre Victor Hugo (1802-1885), romancista, poeta e político francês:

Et la marine va, papa, venir à Malte.

(E os navios virão, papai, virão para  Malta.)

E a língua francesa conta ainda com centenas de palíndromos anônimos, eventualmente citados em conversas espirituosas – em Roland Garros, numa assembleia política, em frente a um tabuleiro de xadrez ou num passeio pela Rive Gauche:

Bon sport, trop snob.
(Bom esporte, muito esnobe.)

Élu par cette crapule.
(Eleito por aquele crápula.)

Engage le jeu, que je le gagne!
(Comece o jogo, para que eu ganhe.)

Et se resservir, ivresse reste.
(E reservando-se, a alegria fica.)


PALÍNDROMOS EM ALEMÃO

Na música Língua, Caetano Veloso (que jura ter composto por acaso o palíndromo Irene ri), diz que só é possível filosofar em alemão. A perspectiva de palindromar nomes como os de Nietszche, Heidegger ou Schopenhauer nos encheu de curiosidade. Mas, afinal, os palíndromos alemães que encontramos, mesmo com a sonoridade típica da língua de Goethe, tinham bem menos consoantes:


Die Liebe ist Sieger, rege ist sie bei Leid.
(O amor é vitorioso, e é intenso quando sofremos.)

Eine güldne, gute Tugend: Lüge nie!
(Uma boa e áurea virtude: nunca minta!)


Ein Esel lese nie.
(Um burro nunca lê.)

Vitaler Nebel mit Sinn ist im Leben relativ.
(Névoa vital com significado é relativa na vida.)


MAIS PALÍNDROMOS POLIGLOTAS

Em catalão

Selecionamos alguns palíndromos de Jesús Lladó, um dos presidentes do Club Palindromista Internacional, em Barcelona. (O outro é Pere Ruiz.)


Mut, sóc noble, erudit i duré el bon costum.
(Mudo, sou nobre, estudioso e manterei bons hábitos.)


Tapa rep, per caritat. Ira! Crep per àpat?
(Recebe tapa, por caridade. Raiva! Panqueca por refeição?) 


Em italiano

Ai lati d’Italia.
(Ao lado da Itália.)

I topi non avevano nipoti.
(Os ratos não tinham sobrinhos.)

Ogni mare è ramingo.
(Todo mar é um errante.)


Em finlandês:

O finlandês é uma língua adequada para palíndromos longos: Saippuakivikauppias (comerciante de pedra-sabão) é considerado o palíndromo natural mais longo. 

Isä, älä myy myymälääsi.
(Pai, não venda sua loja.)

Oot hei kaunis, syys sinua kiehtoo.
(Você é linda, o outono te fascina.)

(do grupo de comediantes Alivaltiosihteeri)

Allu, taas sulaa jää, Lenin elää, ja alus saa tulla!
(Olá, o gelo ainda está derretendo, Lenin vive e o navio pode chegar!)


Em húngaro

Meg ne lássál engem!
(Não olhe para mim!)

Keresik a tavat a kis erek.
(Pequenos riachos procuram o lago.)


Em estoniano

Aias sadas saia.
(No jardim chovia pão branco.)

E nossa pesquisa achou ainda palíndromos em sueco, romeno, tcheco, turco… Não conhecemos ninguém que fale esperanto, mas encontramos palíndromos naquela língua pré-fabricada. E até agora consideramos apenas o alfabeto latino. E os palíndromos russos, hebraicos e árabes, que usam outros alfabetos? E as escritas não alfabéticas? Pois os ideogramas (quem diria?) também permitem a palindromia. Os palins japoneses são chamados kaibun, e são silábicos, ou até vocabulares. Em chinês a frase “A água corrente de Shangai vem do mar” é uma bela sequência palindrômica de 9 ideogramas. Em coreano, eles são chamados Huimunche ogu, que significa “Você vai ficar pasmo”.

E dizem que em algum lugar do planeta, quem sabe na Polinésia, existe um povo que fala uma língua na qual a expressão “suprema beleza e inutilidade das realizações humanas” é um palíndromo.


A seguir, duas seleções temáticas dos palindromistas de plantão na Parêntese:

6 Palíndromos Literários do Giba


22, é? Dá na mesma!
Lá fora, raro falam ‘Semana de 22’.

(a partir de “A ideologia modernista: a semana de 22 e sua consagração”, de Luís Augusto Fischer)

Sade revoa, três a sorrir:
Rosa, sertão, veredas.

(“Grande sertão: veredas”, 1956, de Guimarães Rosa)

Semitons, uma cor.
Ela, a cem, o clímax.
E o ex, a mil,
começa a ler o Camus no Times.

(Albert Camus, escritor e filósofo argelino-francês, 1913-1960)

O tal erro? Confia, não se irrite.
Perec era pessoa comum.
O caos, se parece repetir,
ri e soa naif no correlato.

(Georges Perec, escritor e palindromista francês, 1936-1982)

Otelos? Bom, é bem isso, me vê:
é mui comum o ciúme.
E vemos, sim: é bem obsoleto.

(“Otelo, o mouro de Veneza”, 1622, drama de William Shakespeare)


5 Palíndromos Literários do Fraga

(Inspirado no livro de Franz Kafka, 1.883-1924, escritor tcheco)

BAH, AÍ A VÊS. ATA MAL, É LÂMINA. Ó, SACO. ARPÃO VOA PRA OCASO. ANIMAL, ELA MATA. SE VAI AHAB.
(Inspirado em Herman Melville, 1819-1891, escritor americano, autor de Moby Dick)

OH, LER SADE SOB A CAMA COBERTA: CARNE TENRA,
CATRE, BOCA MÁ, CABO, SEDAS, RELHO.

(Inspirado no marquês Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814, escritor francês)

SOAM RISOS. IA, PÔ, SOÍDO. VOZ: AMARÁ KARAMAZOV ODIOSO PAI? SÓS, IRMÃOS.
(Inspirado no livro de Fiódor Dostoievski, 1821-1881, escritor russo)

O SER PODARÁ PRAGA: LUGAR ERA GULAG. AR PARADO, PRESO.
(Inspirado em Alex Soljenitsen, 1929-1988, escritor russo condenado à Sibéria, autor do livro Arquipélago Gulag)


(No próximo sábado, a edição #5 vai virar oficina para os leitores: Como fazer Palíndromos. E mais duas seleções temáticas do Fraga e do Giba. Imperdível, ao menos pra quem chegou até aqui!)

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