Palíndromo

SóNós #5

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SóNós #5


Quem diria que um dia haveria uma “oficina” de palindromia em Porto Alegre… E para nela se inscrever, basta o leitor não interromper a leitura desta edição #5 da série SóNós, encartada na sempre apreciada Parêntese. Puizé: você topa ser um palindromista iniciante? A gente oferece 5 motivos pra você se iniciar. Segue o fio:

O 1º é um apelo estatístico: o Brasil tem carência desses prodigiosos malabaristas da palavra. Se não nos falha o cálculo, somos apenas metade de 0,0001% da população brasileira (segundo projeção no site do IBGE na 2ª feira passada, 215.037.944 pessoas.) Uns 107 palindromistas tupiniquins. Na verdade, na comunidade palindrômica no Twitter, são conhecidos apenas 84 homens e mulheres que brincam com palíndromos. Mas nosso otimismo supõe uns 25% a mais no país, gente que joga escondido, que desconhece que existe uma tribo que vive pra lá e pra cá. Nada tem mais vagas que a palindromia nacional! (A não ser, claro, a incalculável lacuna global de palindromistas.)

O 2º motivo é uma chantagem social: precisamos de muitos mais interlocutores palindrômicos. Por que fazer da palindromia um insatisfatório vício solitário se ela pode ser uma prazerosa suruba verbal? É como se as palavras tivessem acesso a um kama-sutra vocabular: elas podem gozar em diversas posições!

O 3º motivo é um convite a descobertas: palindromar equivale à aventura dos navegadores, que zarpavam rumo ao desconhecido. Sendo um palindromista, você vai descobrir outro continente, uma terra nova, onde em vez de se perder só terá achados diante dos olhos. Imagine desbravar nosso idioma, enriquecer seu vocabulário, virar o português do avesso.

Já o 4º motivo é uma obviedade: pela diversão infinita. Se você adora jogar com as palavras, ou quer esquecer chatices escolares, a palindromia será a jogatina da sua vida. Ela é tipo um cassino onde o cérebro do apostador nunca sai de sinapses vazias.

E o último motivo é a lei do menor esforço: Não é difícil fazer palíndromos. Você faz a metade e ele tá pronto.

Em 1958, o pernambucano Carlos Pena Filho ensinava o que era necessário ‘Para fazer um soneto’: “Tome um pouco de azul, se a tarde é clara / E espere pelo instante ocasional. / Nesse curto intervalo Deus prepara / E lhe oferta a palavra inicial.” E assim ele seguia, por mais sete versos, até que, quando a gente pensava que já estava terminando, ele recomendava: “Mas ao chegar ao ponto em que se tece / Dentro da escuridão a vã certeza, / Ponha tudo de lado e então comece.”

Um palíndromo é como um soneto. A facilidade é que não precisa ter 14 linhas. A dificuldade é que tem que ser lido igual de trás pra diante. Nem palíndromo nem soneto são poesia, mas qualquer um deles pode ter poesia. Depende de quem escreve, e de quem lê – e de que estranhas coisas podem acontecer enquanto a gente escreve ou lê.

Pensando em explicar como fazer um palíndromo, não nos ocorreu nada melhor do que aquilo que um de nós (o Fraga, no caso) escreveu 36 anos atrás. Sim, temos dicas adicionais. Mas começamos pelo texto fundador, exatamente como foi publicado no saudoso Pasquim, em 31 de julho de 1986, com as referências e circunstâncias da época.

PALINDROMANIA
(Fraga)

Falta pouco para que o Chacrinha pergunte ao seu auditório se quer palíndromo: o Pasca vai popularizar de vez esta antiga brincadeira de fazer o raciocínio dar voltas.

Desmistificando: com alfabetização e senso lúdico qualquer pessoa pode fazer o seu palindromozinho. Com vocabulário acima da média e uma indispensável dose de paciência, aí então você vai palindromar numa boa.

Escolha um tema, um nome, e centralize o trabalho nele. O tema é o ponto em que o palíndromo se espelha para os lados. Se houver uma letra-chave, que não permita repetição, aí é o miolo do palíndromo.

Comece a pesquisar a ida e a volta desde esse ponto. Use a imaginação na construção e na conceituação. O acerto vem como um parto. Às vezes pinta uma descoberta casual e o palíndromo se exibe, feito um camaleão invertido, em meio à ortografia, espantosamente perceptível. Retornando: vale tudo no palíndromo.

Nonsense, livre pensar, achado sonoro (aliterações e cacofonias são ótimos resultados). O ideal é perseguir a frase que enuncie intenção mais clara, uma certa substância além do mero efeito do vaivém. Até bobagens são bem-vindas. No mínimo são exercícios que levam à boa técnica.

Para o aprendizado, evite construir com grupos consonantais duros (inflexíveis à inversão). CH, NC, ND, SC, entre outros, são pedras no caminho. Já BL, CL, BR, CR, GR, TR, VR, entre tantos, são domesticáveis. Use e abuse dos L, M, R, S: essas 4 letras são a base corriqueira de palíndromos, pois garantem fim/início de mil combinações.

Outro recurso que salva construções é a pontuação. Dois pontos, vírgulas, ponto de interrogação, etc., são boias da salvação no mar de dificuldades e servem para quebrar, unir, enfatizar ou suavizar uma frase. Nenhum palíndromo vai aparecer pra você na posição em que Napoleão perdeu a guerra. Tem que forçar a submissão dos termos!

Quanto ao comprimento de um palíndromo, claro que tamanho é documento. É um orgulho, pra não dizer um alívio, quando se atinge uma “tripa” inteligível e interessante. Mas a síntese também desperta o ego do criador e o entusiasmo dos leitores.

Desculpas pelo didatismo com uma coisa tão inútil como o palíndromo. Mas quem sabe ele também não faz parte da harmonia universal?

Fim. Para outra oportunidade, palíndromos ride again: palíndromos do Tio Sam. E aos que insinuam que palíndromo a favor é fácil, prometo uns do contra. Aliás, foi assim que tudo começou aqui no Pasca: o Chico Buarque tascando o Reagan. Ei, Chico, manda outros!


(Nesta foto, um palíndromo visual: o que se vê como camelos são as suas sombras projetadas. Imagem de autor não identificado.)

PASSO A PASSO
(Giba)

Digamos que eu queira partir da palavra CAMELO. Nem sempre a ideia de um palíndromo vem de uma única palavra, mas nesse caso CAMELO será a palavra geradora. A primeira coisa a fazer é invertê-la, e considerar que, no palíndromo, tanto a geradora quanto a invertida vão ter que aparecer. Eu costumo escrever esse começo em duas linhas:

CAMELO
OLEMAC

No caso, não se trata de um bifronte, ou seja, um par de palavras com reversibilidade óbvia, como Raul/ luar, lâmina/animal ou anotaram/ maratona. OLEMAC não é uma palavra, nem um nome próprio ou uma sigla. (Na verdade, existe uma empresa de ar condicionado com esse nome em São Paulo, mas vamos descartar essa possibilidade porque eu não quero ser tão específico.)

O segundo passo é dividir a invertida em duas palavras, ou dois pedaços de possíveis palavras:

-OLE / MAC-

Do lado esquerdo podem entrar mole, fole, bambolê, etc. Do lado direito, macio, macho, Maceió…

(Claro que a próxima questão vai ser o sentido: essas palavras vão formar uma frase, ou coisa parecida? Mas calma, por enquanto estamos só listando possibilidades.)

-OLEM / AC-

Aqui o lado esquerdo é difícil, mas podemos usar bolem ou engolem, e do outro lado centenas de palavras, como acaso, aceno, acima, acordar, etc.

-OLEMA / C-

A principal fonte dessas alternativas é o nosso vocabulário, combinado com a nossa memória. Mas, mesmo antes da internet, nunca foi proibido lançar mão de fontes externas. Folhear um velho dicionário de papel pode ser muito útil para sugerir rapidamente milhares de palavras iniciadas em C, mas onde encontrar palavras que terminem em OLEMA?

Aqui vai um segredo de palindromista: alguns saites na internet fazem esse serviço sujo. Um deles é o Palavras que, que fornece palavras em português, começando ou terminando com qualquer grupo de letras. Outro é o Free dictionary, que busca palavras em inglês e uma quantidade absurda de nomes próprios (pessoas, cidades, marcas, etc.)

Foi no Palavras que que eu encontrei miolema, mesolema, anacolema, neurolema, sarcolema – quatro membranas e um remédio, mas nenhum deles me pareceu útil para o palíndromo sobre camelos.

Mas a palavra invertida também pode ser dividida em três ou mais pedaços, desde que o pedaço (ou pedaços) do meio seja uma palavra (ou palavras).

-O / LÊ / MAC-
-O / LEMA / C-
-OL / E / MAC-
-OLEM / A / C-

Foi a palavra LEMA, encontrada ali no meio, que me chamou mais atenção. Acontece que eu tinha terminado de ler o livro de Delmo Moreira, Catorze camelos para o Ceará, uma reportagem histórica sobre a primeira expedição científica brasileira, realizada em 1859 e comandada por três nomes de rua: o Barão de Capanema, o médico e botânico Freire Alemão e o poeta e etnógrafo Gonçalves Dias. Um dos temas explorados no livro, desde o título, é o da inadequação: trazer camelos de navio, da Argélia para o Ceará, para servirem de meio de transporte? A princípio não parece uma boa ideia, e o livro mostra que, afinal, não foi.

Então o meu objetivo era fazer um palíndromo que tentasse dizer alguma coisa sobre essa inadequação, e LEMA me pareceu um bom começo:

CAMELO
-O LEMA C-

A terceira etapa é a construção. Aí, uma estratégia eficiente é buscar uma expressão, formada por duas ou mais palavras, que seja comum na língua, e que possa dar naturalidade pro palíndromo. Ora, LEMA normalmente é associado a um ideal ou objetivo pessoal: MEU LEMA, NOSSO LEMA. MEU não cabe, mas NOSSO… quem sabe?

CAMELOS SON-
NOSSO LEMA C-

A palavra geradora agora é CAMELOS, no plural, até melhor do que CAMELO, se eu quiser fazer referência ao livro do Delmo. Mas CAMELOS SONOROS? SONOLENTOS? SONÍFEROS? E se a gente invertesse as linhas, e colocasse o LEMA antes dos CAMELOS?

NOSSO LEMA C-
CAMELOS SON-

Aí dá o estalo, difícil de desdobrar em etapas: a frase que eu estou buscando pode ser uma afirmação sobre deixar os camelos (e as baleias, e os pinus, e os pardais) lá onde eles estão, no seu ecossistema, no seu lugar; o C pode ser o centro do palíndromo, e depois de NOSSO LEMA vem uma apresentação, portanto eu preciso de dois pontos:

NOSSO LEMA: CAMELOS SÓ N-

As duas linhas viraram uma, o centro do palíndromo já está pronto, falta encontrar as pontas. O que eu quero dizer (o que seria o tal lema): camelos só no deserto, só na Argélia, só na África, só na caravana, só nas dunas… Mas nenhuma dessas opções dá uma inversão razoável pro início. Até que aparece a solução óbvia:

SOCORRAM O NOSSO LEMA: CAMELOS, SÓ NO MARROCOS.

É um palíndromo, é uma frase completa, gramaticalmente correta, e tem o sentido que eu estava buscando. O problema é que se parece demais com o mais conhecido e repetido dos palíndromos em português.

Aí é o momento de parar. Deu muito trabalho pra chegar até aqui, mas ainda não era bem isso. Melhor começar outro palíndromo, com outra palavra geradora, ou ir fazer alguma coisa útil. Ou ir dormir.

Mas às vezes, na cama, as letras se projetam no teto e não param de se movimentar, como as peças de xadrez da Beth Harmon em O gambito da Rainha. O lugar dos camelos talvez não seja um país, uma região ou mesmo um ecossistema, mas a sua espécie, o seu coletivo: a cáfila. Acende a luz, busca um papel e caneta, ou qualquer coisa escrevente e escrevível, e testa:

ALI FAÇA NOSSO LEMA: CAMELOS, SÓ NA CÁFILA.

Não é o melhor palíndromo do mundo (nunca é), mas chegamos a algum lugar. Agora sim dá pra pensar em outra coisa. Talvez sonhar.


A seguir, as seleções temáticas dos palindromistas de plantão na Parêntese:

6 Palíndromos Esportivos do Fraga

(Inspirado em Nadia Comaneci, bicampeã olímpica de ginástica artística, ídolo internacional)
(Crédito da arte: do meu amigo
 Solda)


ANA MOSER: ELA VIVE FIEL A TI, VÔLEI,
ELO VITAL. EI, FÉ VI VALER, É SOM: ANA!
(Para Ana Moser, jugadora de voleibol, varias veces campeona brasileña y del mundo.)

MAL SABIA: SACARIA ACES. SECA! AÍ, RAÇA. SAIBA: SLAM!
(Inspirado na tenista brasileira Maria Esther Bueno, campeã de 19 torneios de grand slam)


OK, SE RODA, TU LÊ: DÁ MAGUILA!
FALIU GAMA DE LUTADORES: K.O.
(Para José Adilson Rodrigues dos Santos, Maguila, primeiro boxeador brasileiro, ex campeão mundial de peso pesado)

PARA, CARA: DAI AR À NAÇÃO. VOCÊ AMA ETNIAS? USAIN TE AMA. ECO VOA CÁ NA RAIA DA RAÇA. (RAP)
(Inspirado em Usain Bolt, atleta jamaicano, recordista mundial e tricampeão olímpico dos 100 e 200 metros rasos)

A META NA ÁREA: JESSE. EUGENIA.
DAÍ NEGUE. ESSE JÁ ERA ANÁTEMA.
(Inspirado em Jesse Owens, atleta negro americano, 4 medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 1936 na Alemanha nazista)

NOS DÊ ELE, PELÉ: EDSON.
(Inspirado em Edson Arantes do Nascimento, Pelé, brasileiro, o melhor jogador de futebol de todos os tempos)


5 Palíndromos Esportivos do Giba

(Dedicado a quem, como eu, gostava de futebol)

O ato bê da semana se pesa na mesa de botão.
(Pra quem jogou)

Ser tédio: faz ele botar arremessos sem errar. Ato beleza: foi de três.
(Sobre Stephen Curry, o cara que mudou o basquete)

Se liberamos ela voa, não vale somar: é Biles.
(Sobre Simone Biles, a Daiane dos Santos da nova geração)

Logo aí, time o do Telê: ele todo emitia o gol.
(Sobre Telê Santana e a seleção que não ganhou a Copa de 1982)

(Não perca, no próximo sábado, a edição de Só Nós #6: além de mais duas seleções temáticas do Fraga e Giba, a biblioteca essencial dos palindromistas.)

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