Para rir com o cérebro

A morte e a morte e a morte da democracia

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A morte e a morte e a morte da democracia

Por Antonio Tompinson, jornalista participativo

5 de janeiro de 2023

A cena era digna de um filme-catástrofe, sem orçamento milionário. Enquanto policiais militares e seguranças de parlamentares agiam de forma descoordenada para tentar barrar mais invasores, o caos se instalava dentro do Congresso Nacional. O edifício histórico virara alvo de extremistas que quebravam os vidros e pichavam as paredes com o lema “ditadura é a nova democracia”. Ao meu lado, dentro do salão principal já totalmente tomado por uma multidão, um homem de rosto largo e queixo fino, vestindo um uniforme de Dragão da Independência confeccionado por ele mesmo, mas sem as botas (“porque Lenin usava botas”), gritava a plenos pulmões: “5G dos Estados Unidos ou morte!” Ele carregava uma réplica de plástico da coroa imperial brasileira, com os detalhes feitos de conchinhas e grãos de arroz, que planejava entregar para o presidente. Como não o encontrou, deixou-a em cima da mesa com um bilhete escrito à mão: “Ao meu imperador, Jair Bonaparte”.

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Por Antonio Tompinson, jornalista participativo

5 de janeiro de 2023

A cena era digna de um filme-catástrofe, sem orçamento milionário. Enquanto policiais militares e seguranças de parlamentares agiam de forma descoordenada para tentar barrar mais invasores, o caos se instalava dentro do Congresso Nacional. O edifício histórico virara alvo de extremistas que quebravam os vidros e pichavam as paredes com o lema “ditadura é a nova democracia”. Ao meu lado, dentro do salão principal já totalmente tomado por uma multidão, um homem de rosto largo e queixo fino, vestindo um uniforme de Dragão da Independência confeccionado por ele mesmo, mas sem as botas (“porque Lenin usava botas”), gritava a plenos pulmões: “5G dos Estados Unidos ou morte!” Ele carregava uma réplica de plástico da coroa imperial brasileira, com os detalhes feitos de conchinhas e grãos de arroz, que planejava entregar para o presidente. Como não o encontrou, deixou-a em cima da mesa com um bilhete escrito à mão: “Ao meu imperador, Jair Bonaparte”.

A ação, é claro, não surgiu do nada. O aceno a uma estratégia inconstitucional veio com a declaração de Bolsonaro, logo após o primeiro turno, de que não reconheceria os votos dos delegados eleitorais da Bahia e do Rio Grande do Sul. Quando soube que não havia delegados eleitorais no Brasil e que não poderia seguir os passos de seu amigo Donald Trump, aceitou continuar a disputa, mas a mensagem estava lançada. As três maiores chapas fora do segundo turno – João Doria/Felipe Neto, Luciano Huck /Fernando Henrique, e Lula/Lula nada fizeram, jogando fora a última oportunidade de salvar a democracia. Deu no que deu. 

A notícia da derrota final de Jair Bolsonaro, após a contagem dos votos em papel couché fosco, acelerou os acontecimentos. O presidente, que tivera 6% a menos de votos do que seu oponente, não aceitou o resultado. Segundo ele, a diferença de 6% está dentro da margem de erro, portanto a eleição terminara empatada e ele, por ser mais velho, deveria ficar no cargo. A oposição até argumentou que resultado de eleição não tem margem de erro, em vão. As redes sociais bolsonaristas das quais eu participo para fazer essa matéria já estavam em pleno vapor postando as hashtags #eleiçãoroubada #recontagemjá, #votonaoposiçãoéfraude.

Aproveitando a instabilidade, Jair Bolsonaro fez um pronunciamento no Facebook conclamando seus seguidores a salvar o Brasil do voto, “esse sistema arcaico, mas não daquele tempo que a gente tem saudade, de um pouquinho depois, tá okey?” Nos diversos grupos de zap extremistas que eu monitorei para essa reportagem passou-se a falar da necessidade de um regime autoritário para restaurar a liberdade de expressão. Um dos primeiros a incentivar abertamente um golpe armado foi Astolfo Salgado, ator, modelo e ativista de extremíssima direita, como ele mesmo se define. Em seu canal no YouTube, que eu sigo atentamente para escrever esse artigo, Salgado defende há tempos que o novo presidente do Brasil deve ser eleito por popularidade no Twitter. “Quem tiver mais retweet, leva. Nada fora disso é aceitável.”

Outro elemento importante na preparação da invasão foi a página da qual me tornei um dos membros mais ativos por questões profissionais, o “Fernão de Magalhães Mentiu”. Sua principal plataforma é tirar dos livros didáticos a primeira viagem ao redor do mundo do navegador espanhol, um embuste terrabolista na visão deles, e seu símbolo é a bandeira nacional com o lema “Homeschooling sem partido”. Foi dali que saiu o desafio final que levou à ação: “Ou tomamos o poder agora pela força ou perdemos o poder até recuperarmos o poder de novo!” Passara a última possibilidade de salvar a democracia; o golpe tinha começado.

O primeiro plano proposto no grupo “Conspiração Sigilosa” do Telegram sugeria que todos os revoltosos deveriam se reunir na porta do TSE para forçar o reconhecimento da vitória de Jair Bolsonaro. Como a maioria não sabia onde ficava o TSE, decidiram invadir o Congresso mesmo. O encontro das diferentes facções na saída do aeroporto foi muito celebrado. Uma delas, a única à qual eu ainda não estou integrado, vestia roupas dos personagens infantis de Monteiro Lobato. Um Visconde de Sabugosa de pernas finas, chinelos novos e olhar claudicante me explicou que eles lutam contra o cancelamento total do escritor pelo politicamente correto, já que suas histórias são só “meio racistas”. Segundo ele, mais adequado seria um “cancelamento parcial”. Eles mantêm um clube de leitura que todo domingo analisa os episódios da versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo para a televisão, mas confessa que, infelizmente, ainda não encontraram nenhum traço de quase racismo para confirmar a teoria.

Enquanto caminhávamos rumo ao Congresso, conversei com Luna Mirabilis, co-criadora (junto comigo) do curso online sobre a QOlônia, teoria conspiratória que defende que a decadência brasileira começou quando Estácio de Sá se aliou a Arariboia, um pagão. Perguntei se ela achava que aquilo poderia resultar em uma guerra civil, mas ela disse que não. “Sou negacionista”, me contou orgulhosa, com seus óculos de aros vermelhos, cotovelos pontiagudos, cabelos arrepiados e um longo vestido colonial. “Inclusive acredito que a independência do Brasil nunca aconteceu e ainda fazemos parte do Império Português. Tudo foi um golpe da mídia antifa terrorista da época, bancada até hoje pela Rede Globo”. 

Um momento especialmente tenso foi quando nos encontramos com centenas de membros do grupo de extrema esquerda “Democracia Polpotiana”, também preparados para invadir o Congresso ou o Palácio do Planalto ou a Catedral ou os três. O sangrento confronto foi evitado quando todos viram cartazes em ambos os lados defendendo a censura à imprensa e o fechamento do Congresso, e passaram a cogitar uma aliança estratégica como nos saudosos anos 30. Enquanto os democratas polpotianos discutiam em uma plenária se o acordo seria um retrocesso na luta contra o fascismo ou um avanço na luta contra o liberalismo burguês, os bolsonaristas partiram para a ação gritando, primeiro, “Não houve ditadura militar no Brasil!”; e, em seguida, “Pela volta da ditadura militar no Brasil!” A polícia local, incapaz de perceber o grande perigo representado por aquela massa vestida com roupas setecentistas e fantasias de peça infantil, deixou a rebelião seguir e, assim, desperdiçou a última esperança de salvar a democracia. Brasília nunca mais seria a mesma.

Com o Congresso quase vazio e desprotegido (era uma segunda-feira), entrar no prédio foi fácil. Retirar os invasores, nem tanto. Foram mais de quatro horas de pichação, gritos autoritários, lives e selfies em poses agressivas. O auge da ação foi, porém, foi quando os manifestantes, já um pouco entediados, se dividiram em falsos partidos e simularam a votação de um projeto de lei que “proibia a derrubada de estátuas de personalidades históricas de passado duvidoso”. Um dos manifestantes/deputados, um senhor careca de lábios grossos e pernas bem torneadas, chegou a comentar que aquilo já era proibido, mas foi imediatamente expulso do partido a que pertencia. A votação foi feita em papel, evidentemente, e a lei teve 102% de aprovação, sendo apelidada de “Lei da estátua do traficante de escravos injustiçado”.

Por volta das dez da noite, os últimos remanescentes, já cansados de permanecerem no salão sem serem incomodados, saíram pacificamente. Na saída, foi possível ver alguns colegas de profissão sendo hostilizados, mas eu escapei por estar misturado aos integrantes do portal “Mamãe, Isso É Censura Prévia”, que eu idealizei em 2015, como parte da minha pesquisa. 

A reação do presidente Jair Bolsonaro demorou, mas veio através de um story no seu Instagram. Parabenizou os revoltosos, declarou que eles mereciam ser condecorados como heróis de guerra, mas lamentou tudo isso daí.  Acrescentou que não ia entregar a faixa presidencial, para poder emoldurar e levar para sua casa, no Rio de Janeiro, de recordação.

O final da história é bem conhecido. O novo presidente, de dedos longos, nuca peluda e pouco pescoço, logo na posse defendeu o Direito Divino dos Presidentes da República e a Infalibilidade Presidencial. Em seguida, mandou prender os que invadiram o Congresso, os que se opuseram e os que se omitiram. Baixou também uma encíclica republicana (novo nome dos decretos-leis) anticorrupção que obriga todos os cidadãos a comprovar residência em qualquer transação financeira no país. Essa medida visa resgatar o prestígio econômico do Brasil junto aos investidores e que talvez seja a nossa última chance de salvar a democracia. 


André Boucinhas é professor de História e roteirista de humor, no Zorra e noutros programas.

Haroldo Mourão é roteirista da Rede Globo há vinte anos e participou das equipes de criação dos programas Casseta & Planeta e Zorra

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