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Indenizações exorbitantes impostas a jornalistas evidenciam corporativismo dos operadores da Justiça

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Indenizações exorbitantes impostas a jornalistas evidenciam corporativismo dos operadores da Justiça Foto: Ekaterina Bolovtsova/Pexels

No dia 28 de setembro, o Judiciário, mais uma vez, levantou a toga e deixou o seu corporativismo balançando para todo mundo ver, quando a juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, de Florianópolis, condenou a jornalista Schirlei Alves a um ano de detenção em regime aberto e a uma “reparação” total de R$ 400 mil. A repórter denunciou, em 2020, o tratamento dispensado pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço, colegas da juíza Studer, à vítima de estupro Mariana Ferrer.

A sentença veio a público logo após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitir uma advertência ao juiz Rudson Marcos, por seu comportamento no caso, em 14 de novembro. Os abusos de direitos humanos contra Ferrer foram tão flagrantes que motivaram a tipificação do crime de violência institucional contra vítimas. Ainda assim, Alves foi condenada por difamação.

O recado do Judiciário catarinense é claro: magistrados estão acima do Estado de Direito e não podem ter suas atividades questionadas por ninguém.

O caso teve início quando, durante uma audiência na qual o empresário André de Camargo Aranha foi julgado por uma acusação de estupro da influenciadora digital Mari Ferrer – ocorrida, conforme o processo, em 2018 no Café de La Musique, em Jurerê Internacional –, o juiz permitiu que o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, humilhasse e constrangesse a vítima. Ferrer reclamou do tratamento, mas o juiz nada fez, nem o promotor Thiago Carriço, que em tese deveria ter interesse em preservar a vítima. De fato, Carriço parecia mais preocupado em defender o acusado, pois em suas alegações finais afirmou que ele não tinha condições de verificar o consentimento de Ferrer – que estava dopada, segundo seu testemunho – para o ato sexual.

A repórter Schirlei Alves obteve o vídeo da audiência, com duração de cinco horas, e divulgou uma versão editada. A matéria trazia no título a expressão “estupro culposo”, criada por Alves para tentar explicar ao público leigo a tese do promotor. Suas excelências, Marcos e Carriço, prestaram queixa por difamação contra a jornalista. A primeira instância de Florianópolis entendeu que a edição do vídeo se configurou como manipulação e que a expressão “estupro culposo” espalhou notícias falsas sobre o juiz e o promotor, com os agravantes de ambos serem funcionários públicos e o meio de divulgação – a internet – ter facilitado o crime. Assim, sentenciou a repórter a um ano de prisão em regime aberto e ao pagamento de uma reparação de R$ 200 mil para cada um dos queixosos.

Analisar se as ações da repórter de fato configuraram difamação é papel da Justiça e as instâncias superiores devem esclarecer a questão nos próximos meses. No entanto, qualquer cidadão sem competência alguma em direito estaria desculpado por considerar as penas inéditas impostas a Schirlei Alves como mais uma manifestação do espírito de corpo que une juízes, promotores e advogados. É muito raro alguém ser condenado à prisão por crimes contra a honra e ainda mais raro uma reparação chegar aos seis dígitos, visto que, na opinião do judiciário brasileiro, as sentenças não podem ser fonte de enriquecimento. Esta tradição é o motivo pelo qual os trabalhadores escravizados por vinícolas na Serra Gaúcha, por exemplo, receberam a menor parte dos R$ 7 milhões impostos pelo Ministério Público do Trabalho como indenização, ficando com menos de R$ 10 mil cada um – o próprio MPT ficou com R$ 5 milhões a título de reparação por “danos coletivos”. 

A situação costuma ser diferente quando os queixosos são magistrados, porém. As reparações incomuns impostas pela juíza Studer talvez tenham se inspirado em casos semelhantes do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A Rede Globo, por exemplo, foi condenada pela juíza Cleni Serly Rauen Vieira a pagar uma indenização de R$ 500 mil à também juíza Ana Paula Amaro da Silveira, como indenização por danos morais causados por uma reportagem do Fantástico. A indenização foi reduzida para R$ 350 mil pela Segunda Câmara de Direito Civil do TJ-SC em 2017. Acórdãos e sentenças disponíveis no website Jusbrasil sugerem que, quando o reclamante é um cidadão comum, as indenizações determinadas pelos magistrados catarinenses costumam variar entre R$ 10 mil e R$ 50 mil. 

Todavia, o corporativismo não parece grassar apenas em Santa Catarina. Em 2022, o STF impôs ao também jornalista Rubens Valente o pagamento de reparação por danos morais no valor de R$ 310 mil, em favor do decano da corte, ministro Gilmar Mendes. Ao contrário de Alves, Valente não tem nenhum tribunal superior ao qual apelar.

É uma aberração a injúria, a calúnia e a difamação serem tratadas na esfera penal no Brasil, justamente porque dá margem a violações das liberdades de expressão e de imprensa. A sentença imposta a Schirlei Alves só pode ser interpretada como uma retaliação a seu trabalho como jornalista, bem como a sentença contra Rubens Valente. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) advertiu o Brasil há dez anos sobre esses riscos e recomendou o tratamento dessas questões na esfera civil

“Para assegurar uma adequada defesa da liberdade de expressão, os Estados devem ajustar suas leis sobre difamação, injúria e calúnia de forma tal que só possam ser aplicadas sanções civis no caso de ofensas a funcionários públicos. Nestes casos, a responsabilidade, por ofensas contra funcionários públicos, só deveria incidir em casos de ‘má fé’.  A doutrina da ‘má fé’ significa que o autor da informação em questão era consciente de que a mesma era falsa ou atuou com temerária despreocupação sobre a verdade ou a falsidade de esta informação.”

Até agora, nada foi feito pelo Congresso Nacional para ajustar o Código Penal brasileiro a essa recomendação da CIDH. Enquanto isso, jornalistas seguem expostos ao abuso da legislação para retaliações contra reportagens que desagradem as pessoas implicadas. Mesmo em casos “normais”, nos quais não há imposição de indenizações altíssimas, o simples fato de responder a um processo judicial provoca constrangimento e tribulações. Como a injúria, a calúnia e a difamação são consideradas crimes, as polícias judiciárias, o Ministério Público e os tribunais são obrigados a se mover, quando recebem uma queixa. 

Se o repórter decidir se defender até a última instância, perderá muito tempo e dinheiro para comprovar sua razão. Se perder a causa, em geral será obrigado a se retratar e pagar algumas cestas básicas ou prestar serviços comunitários, mas deixará de ser réu primário. O jornalista Paulo Cezar de Andrade, conhecido como Paulinho, passou seis meses na prisão por condenação em um processo movido pelo dono da Kalunga, pois já não era réu primário devido a condenações anteriores por crimes contra a honra. Muitos profissionais optam por um acordo envolvendo a retratação e a retirada da matéria em questão. Quando isso acontece, perde a sociedade, porque em grande parte das ocasiões as reportagens suprimidas apresentam os fatos corretamente.

A sociedade civil precisa pressionar o Congresso Nacional para que atenda às recomendações da CIDH e de outras organizações voltadas à defesa dos direitos humanos, para que as violações às liberdades de expressão e de imprensa sejam reduzidas no Brasil. Além disso, o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público deveriam reprimir a imposição de indenizações exorbitantes quando operadores do Direito são os queixosos – se não no interesse da Justiça, pelo menos para preservar a imagem do Judiciário e do Ministério Público. Não se trata de tornar jornalistas inimputáveis, porque, como em qualquer outra área, existem os maus profissionais, mas de adequar as punições aos danos provocados. De outro lado, o tratamento da injúria, calúnia e difamação na esfera civil, na qual não há a ameaça de prisão e os custos para o eventual litigante de má fé são mais altos, evitaria a autocensura por parte de repórteres, permitindo ao jornalismo cumprir melhor sua função social de fiscalizar o poder.


Marcelo Träsel é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo

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