Pensata

Uma conversa difícil sobre as eleições municipais

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Uma conversa difícil sobre as eleições municipais Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

(Antes de escrever um texto como esse, é sempre importante fazer o “disclaimer” de que não se trata de minorar a luta ou a trajetória de ninguém, mas apenas fazer uma análise a partir das condições sociais e políticas nas quais estamos colocados de modo descritivo, sem substituí-la por atos de vontade que impulsionam as próprias ideias em que estão envolvidos, como poderá ser necessário mais tarde.) 

Ainda dá tempo. 

Estamos no mês de junho, as eleições municipais são em outubro. É verdade que para derrotar Melo – e talvez forças ainda piores que ele – uma mobilização digital já deveria estar tomando conta da cidade, aumentando a capilaridade do movimento e possibilitando uma renovação dos quadros executivos e legislativos da capital. 

Mas o mês de maio mudou tudo. 

Vivemos a maior catástrofe de todos os tempos na cidade, e ela veio precedida por significativos danos no ano passado e os ventos terríveis do início deste ano. Pessoas desalojadas, destruição de casas, patrimônios no comércio, perda de vidas humanas e animais, devastação da orla e das regiões como Sarandi, Humaitá e do Quarto Distrito como um todo. 

A cidade exigirá uma reconstrução que não envolverá apenas as regiões atingidas, mas também providências de planejamento geral e decisões ecopolíticas envolvendo a convivência com suas águas. Independente do lado que vencer, um projeto socioambiental vencerá. 

De um lado, o modelo privatizador e de mínima regulação, confiando no dinheiro para resolver os principais problemas e garantindo uma cidade confortável para os ricos. Consultorias especializadas em gentrificação e desresponsabilização nas catástrofes já estão aí com seu know-how pronto: como a iniciativa privada – em especial as construtoras e os grandes empreendimentos – já estão de olho na reorganização urbana. Sabemos o que querem: grandes shoppings repletos de hipermercados, farmácias e lojas “de marca”, pontos de encontro de inovação onde circulam hipsters e geeks da tecnologia, condomínios fechados com segurança privada e grandes e altos edifícios, ou conjuntos habitacionais, em que um apartamento de 30m2 é vendido a preço de ouro. “Concrete jungle”, como diria a música. 

De outro, qual o projeto? Não sabemos exatamente. Sabemos que existe uma iniciativa forte do governo Lula de proporcionar auxílio aos afetados, sob o comando de Paulo Pimenta, e que isso envolve pessoas e pequenas, médias e grandes empresas. A injeção de dinheiro é também do interesse do lulismo: a convergência entre programas sociais eficientes e o ganho de popularidade – que faz parte do jogo da democracia – sempre foi uma tática efetiva e aqui poderá não apenas funcionar, como também servir de laboratório para investimento em outros Estados. A reconstrução da infraestrutura pode impulsionar o PAC e, com ele, criar novos empregos e oportunidades, estimulando o crescimento do país. 

A aposta da esquerda, hoje, é 100% nisso. Não há plano B. A ideia é colar a pré-candidata Maria do Rosário em Pimenta e Lula, a ponto de apagar sua própria imagem para servir de gestora da reconstrução. A votação contra as “saídas temporárias”, e sobretudo a explicação que deu, deixa isso muito claro. Em nome das eleições municipais, Maria do Rosário deixou de ser Maria do Rosário – isto é, uma deputada militante e combativa dos direitos humanos – e tomou o cuidado de não abrir um front desnecessário de ataque para a extrema direita em outubro. 

Mas a pergunta é: se é esse o caso, não estaríamos meio desorientados?

Maria do Rosário sem dúvida é perseguida e sofre todo tipo de ataque injusto comandado pelo fascismo e pela misoginia. Ela consegue fazer convergir um ódio que era dirigido, por exemplo, para Marcos Rolim, de um lado (direitos humanos), e Manuela D’Ávila, de outro (misoginia). Isso justifica que seus eleitores continuem insistindo nela, para fazer justiça a uma pessoa e uma luta necessária em qualquer contexto, mas especialmente no que vivemos hoje. Todo respeito a essa luta.

No entanto, se a candidata do PT hoje é tão rejeitada que precisa evitar ser a si mesma, não seria melhor outro nome?

O PT teria, entre seus quadros, nomes experientes, como o bem-sucedido Edgar Pretto ou Reginete Bispo, ou, com uma virada geracional, Leonel Rahde ou Laura Sito. Fora do PT, temos Matheus Gomes, Karen Santos, Marcelo Sgarbossa e, claro, Manuela D’Ávila. 

Entendo que a atual direção do PT queira manter uma certa ordenação cronológica, uma “fila” que empurraria Maria do Rosário para a frente (apesar de ela já ter inclusive disputado a Prefeitura). Mas a minha pergunta simples ecoa em todos os lugares: por que escolher uma candidata com tanta rejeição, com um teto tão baixo, em meio a múltiplas possibilidades?

A esquerda tem uma chance histórica de vencer uma cidade que foi das suas principais plataformas na década de 90. A gestão de Melo foi em muitos aspectos detestada e, depois das enchentes, é fortemente rejeitada. Mas esse lugar não vai ficar vazio: é possível que, no fracasso de Melo, surja alguém ainda pior vindo da extrema direita como alternativa. Já deveríamos ter aprendido isso com Marchezan e, claro, com tudo que veio desde 2018. Nesse caso, é prudente sair com uma candidatura que tem que vencer tantas resistências? 

Há um elemento a mais a se considerar. Continuamos ainda subestimando muito a política digital. Mesmo com todas as vitórias da extrema direita, mesmo com o Congresso Nacional infestado de influencers toscos, ainda existe a esperança de que muitas curtidas não significam muitos votos. Mas isso não tem se mostrado real. A política migrou para o digital, o lado de cá (de onde você está lendo esse texto) ocupa boa parte do espaço do nosso imaginário. Olhe para a rua e perceba a quantidade de pessoas de todos os tipos olhando para as telas, depois me diga se é possível considerar a dimensão digital como secundária em relação às formas de militância tradicional. 

Se observamos a comunicação digital, o perfil da deputada Maria do Rosário é fraquíssimo (por exemplo, no Instagram). Nem vou comparar com os números da extrema direita. Comparem com Manuela, Matheus, Leonel. É uma diferença estratosférica. E isso não é por acaso: esses parlamentares já se forjaram na linguagem digital. Eles vêm de dentro desse ambiente. 

No caso das parlamentares da Bancada Negra, como Matheus Gomes, Karen Santos, Laura Sito, Bruna Rodrigues e Daiana Santos, ainda há um plus: elas vêm de movimentos populares, falam a partir de uma posição diretamente implicada, tocam diretamente a nervura do problema. Não por acaso tão rapidamente houve adesão popular às candidaturas e, provavelmente, teremos uma bancada ampliada no próximo período. 

Nossa aposta, então, fica integralmente depositada no lulismo, com seus programas sociais e de reconstrução fortes, mas com poder limitado na influência digital e muita rejeição.

Ainda dá tempo. 

Não vou sugerir X ou Y, embora fique mais ou menos claro aqui quem eu acho que deveria estar concorrendo. Mas – com todo respeito à pré-candidatura – acho que a esquerda poderia ter uma estratégia menos arriscada em um cenário no qual sua vitória é possível.     


Moysés Pinto Neto é professor de Filosofia.

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