Pequenas ficções

E se a periferia fosse o centro? – Texto 4: Próximo carnaval

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E se a periferia fosse o centro? – Texto 4: Próximo carnaval

Organização de Marco Mello e de Daniele Gualtieri Rodrigues

Esta é uma série de crônicas, contos, cartas e poesias que a Parêntese apresenta a seus assinantes com exclusividade. A seleção conta com textos dos estudantes-escritores da escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. A iniciativa partiu dos organizadores do livro E se a periferia fosse o centro? (EMEF Saint Hilaire, 124 pgs). A apresentação completa da obra e os textos anteriores já publicados na Parêntese podem ser conferidos neste link.

Próximo carnaval

22/02/2019. O clima anunciava o final do verão, as últimas ondas de calor faziam com que todos saíssem de suas casas em busca de uma brisa ou qualquer forma de se refrescar. Agitada e barulhenta era como a periferia se encontrava, com os postes decorados, as ruas sujas de copos plásticos e decorações baratas. Tudo isso era obra do carnaval, ou melhor, do final dele. Em meio a essa confusão, a família de Lucas retornava à sua casa, à frente da Dona Lúcia, mãe solteira de dois filhos, que cumprimentava a todos que por ela passavam. E as pessoas não falavam com ela como se fossem apenas vizinhos ou moradores próximos, mas sim grandes amigos com grandes vínculos. Bia, sua filha mais nova, olhava para tudo com receio, afinal não ter passado o carnaval na sua casa com seus amigos e vizinhos, fazia com que ela pensasse na situação. 

– Mãe, a senhora tem certeza que está melhor? Disse ela com a voz trêmula e olhar preocupado. 

– Óbvio, sentir o calor e a energia do meu morro não tem preço, não aguentava mais aquele hospital preto e branco.

– O que a mamãe precisa agora é descansar, venham. Felipe nos espera em casa, – disse Lucas, cortando o clima triste que estava prestes a se criar.

Felipe era o primo de Lucas e Bia, sobrinho de dona Lúcia, que havia sido expulso de casa pela sua mãe após ceder às tentações do Morro da Cruz, afinal nem tudo ali era festa e alegria. 

13/05/2019. Meses haviam se passado, os momentos em que Lucas e sua família passaram juntos e despreocupados não foram em abundância, mas aqueles pequenos momentos bobos em que todos se reuniam no final do dia para compartilhar com o resto da família seus feitos da semana, ou os churrascos de domingo, faziam eles se sentirem uma família normal, sem raça, sem status, sem qualquer característica que poderia ser taxada como minoria.

Mas esses momentos infelizmente acabaram, pois a notícia de que um vírus mortal havia chegado na cidade em que moravam foi devastadora, como um tsunami que levava consigo qualquer esperança de uma vida calma, a Covid 19, um nome que passou a ser temido por todos naquela casa. Dona Lúcia havia proibido essa palavra, se referiam à doença como o “inimigo”. Bia e Felipe acharam a ideia uma bobagem de início, afinal para eles era apenas uma gripe. Lucas temia pela mãe, que de todos ali era a que a Covid mais afetava.

As escolas e comércios não essenciais foram fechados e todos na cidade já usavam máscaras, mas na periferia não podiam se dar ao luxo de ter água encanada todo dia, o que diria máscaras e álcool em gel… 

Para todos que ali moravam, o inimigo não era um vírus e sim um homem engravatado que não dava apoio nenhum para se defender dele.

23/11/2019. O silêncio ensurdecedor dominava o morro, as mortes causadas pelo inimigo só aumentavam, batendo de porta em porta, de casa em casa, levando um ente querido consigo. E na casa de Lucas não seria diferente. Infelizmente Bia entrou em contato com o vírus, que foi transmitido a Dona Lúcia. E ir a um hospital particular estava fora dos planos, um público, então… mal cabiam os médicos, a única saída da família era esperar que a visita do inimigo fosse embora, sem levar ninguém consigo. 

Lucas entrava em desespero, sua mãe era seu porto seguro e sua irmã a sua base. Bia se sentia culpada, afinal, supostamente ela foi quem havia trazido o vírus consigo. Felipe havia voltado para o crime para poder ajudar sua família e mãe biológica. As semanas se passaram e toda alegria que naquela casa havia ido embora. E Dona Lúcia não conseguiu resistir ao inimigo. Bia entra em desespero e divide seu pensamento com seu irmão: 

– Se eu não tivesse saído, ou se tivéssemos colocado ela em um hospital particular, ela ainda estaria aqui.

– Não podemos ficar nos martirizando, a mamãe se foi. No lugar onde ela deu seu primeiro suspiro e seu último sorriso, ela escolheu ficar, e o que nos resta são as lembranças e todos os momentos em que passamos juntos. Responde Lucas com os olhos cheios de água.

23/09/2022. Talvez com um governo diferente ou uma sociedade diferente a família de Lucas e outras milhares de famílias não precisem passar por isso, mas esse não foi o caso. Se Dona Lúcia morasse em outro lugar ou fosse uma pessoa diferente, ela estaria viva? Essa é uma pergunta que estatísticas podem responder, mas agora ela é apenas mais um número, uma negra morta entre tantas outras pelo inimigo, e a família de Lucas é só mais uma entre tantas outras.

Mas, se lutarmos contra esse círculo vicioso talvez um novo carnaval possa acontecer, ser construído por nós, nas ruas, e ninguém mais sofra pelas irresponsabilidades de um inimigo. Seja ele um vírus ou um homem engravatado.


Jullia Justo Bueno é aluna da turma 91 da escola Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre

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