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Recomendo: Engenheiro Fantasma

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Recomendo: Engenheiro Fantasma Companhia das Letras?Divulgação

Engenheiro Fantasma (Companhia das Letras, 2022), de Fabrício Corsaletti, ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia e de Livro do Ano em 2023. O título remete a uma canção de Dylan. No prólogo, o poeta nos diz que sonhou que estava em Buenos Aires quando encontrou Bob Dylan em um hotel. Esse Bob Dylan havia se exilado na capital portenha há muitos anos, deixando outro Dylan na carreira de pop star da música. “Os portenhos esnobavam seu legado musical, mas adoravam um volume de sonetos ambientados em Buenos Aires que ele tinha publicado durante os primeiros anos na cidade.” No sonho, quando o poeta vai finalmente pegar o 200 Sonnets, de Dylan, acorda. Nos dez dias seguintes, fora do sonho, melhor esclarecer, o poeta teria escrito 56 sonetos, que compõem o Engenheiro Fantasma, restando perdidos ainda outros 144.

A charmosa armação ficcional que coloca o poeta como cavalo de santo de um duplo de Dylan vivendo em Buenos Aires (e como esse duplo foi encontrado no sonho do próprio poeta, no limite, trata-se de um cavalo de santo de si mesmo, da versão de seu ídolo que traz dentro de si) não só introduz, mas estrutura o conjunto de poemas, recortando a temática e o timbre dos 56 sonetos. Aspectos da vida e da obra do compositor se transformam em matéria poética combinada à vida cotidiana da capital argentina, de modo a imaginarmos como Dylan veria e experimentaria o mundo se lá vivesse. Por sua vez, os sonetos não são, em Engenheiro Fantasma, a finalidade da expressão, mas se comportam como uma constante rítmica, melódica e harmônica de se dispor as palavras. Isto é, não se trata da solene forma com larga tradição na literatura brasileira, mas de versos que, quando falados, se organizam num determinado ritmo em um verso e a soma de quatorze desses versos constroem, entoativamente, musicalmente, uma forma.

Essa orientação oral para uma forma escrita funde o poeta, que diariamente trabalha e repete para si os versos, ao compositor popular desdobrado para o mundo portenho. Apesar dos prêmios, uma parte da crítica não soube como receber sonetos como este:

sonhei com aquela atriz do Mississippi
eu era um homem-lava de Pompeia
nos seus olhos brilhava alguma ideia
seu cabelo escorria à moda hippie

“vou te tirar daqui naquele jipe”
“garota, isso vai ser uma epopeia”
“vamos, depressa, à noite eu tenho estreia”
“odeio segurança de área vip”

depois o sonho dava uma guinada
eu era o dono de um hotel em Vegas
e ela quebrava a banca na roleta

mais uma volta e estamos em Granada
ela me diz “o amor nunca me cega”
eu rio, estou feliz, “você é treta”

Em vez de naturalidade e apuro técnico, esses críticos enxergaram uma matéria supostamente trivial demais para a poesia, ou rimas óbvias ou fracas. É espantoso! De um lado, parece a velha expectativa de poesia ser algo grave, solene, fora da vida. De outro, essa crítica simplesmente não percebe a dificuldade técnica, ao mesmo tempo, um tanto brincalhona, de se conseguir escrever sonetos com esses temas e com esse despojamento – ou seja, a contrapelo de não só toda uma prática de engessamento de temas próprios à poesia, mas também de termos, e rimas, e esquemas de rimas pisados e repisados há, literalmente, centenas de anos.

Ao cabo, Engenheiro fantasma constrói uma curiosa síntese entre um espírito clássico, da ordem, do planejamento, da engenharia, pressuposto no uso do soneto como forma fixa, e um espírito romântico, errante, desbravador, dionisíaco, que responde à persona de Dylan e a Buenos Aires como focos de desejo – há outros focos de desejo no livro, mas não vou estragar os prazeres da leitora ou do leitor. São sonetos, mas são descolados. Tem rock’n’roll, mas são sonetos. Uma combinação como essa já vale a leitura e explica, um tanto, parte do desnorteamento da crítica diante dessa obra singular.


Guto Leite é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na UFRGS.

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