Ensaio | Parêntese

Víctor Lemus: Merry Christmas in México-Tenochtitlan

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Víctor Lemus: Merry Christmas in México-Tenochtitlan Santa Claus em estado de sítio Nos shoppings da Cidade do México, as músicas natalinas que marcam o estado de ânimo no ambiente aquecido artificialmente sugerem ao passeante distraído que Jesus Cristo (assim como os super-heróis que povoam as telas nos apocalipses hollywoodianos) era cidadão americano. Em algum canto, como uma relíquia pré-moderna, há sempre um presépio com figuras desproporcionadas e animais impossíveis na bíblica Nazaré. Que departamento de marketing conseguiu conjugar a imagem do bonachão nórdico carregado de presentes no seu trenó de renas com a do menino pobre do tórrido deserto do Oriente Próximo? Mais do que os enfeites festivos, no entanto, os corredores lotados me lembram que é a época em que os parentes que durante o ano inteiro enviaram remessas em dólares aos que ficaram por aqui, voltam invadindo os espaços, aggiornando os gostos e os costumes. Pelos bonés e as camisetas largas, é possível intuir que uns vêm do South camponês; as jaquetas acolchoadas e o cabelo engomado demostram vida urbana. Os unifica, no entanto, o iPhone 11, oráculo particular, consultado permanentemente, que dá a sensação de que vêm de uma sociedade tão dinâmica em que tudo é urgente. Mas as sacolas com presentes para a festa de Natal revelam a simbiose com a cultura americana. Observo os brinquedos, e constato que pelo menos não está na moda o boné do colonizador conservador Daniel Boone (outrora popular e ainda hoje disponível no Mercado Livre), cuja heroicização hollywoodiana propiciou um grande massacre de guaxinins para satisfazer o desejo da garotada nos longínquos 60 e 70 do século passado. Enquanto caminho pelos corredores mornos, alheios à frente fria número 25 em que nos encontramos hoje, lembro os versos do poeta romântico Manuel Carpio, que em setembro de 1847 viu flutuar sobre o Palacio Nacional da Cidade do México a bandeira norte-americana – invasão que antecedia a perda de metade do território nacional. Traduzo sem rigor poético: Ruidosa desonra hoje nos oprime Ai! Se tivéssemos seguido teus passos Nunca o pendão das estrelas Flutuaria na cidade de Moctezuma! A estrofe do poeta, membro de La academia de Letrán e um dos fundadores do sistema literário mexicano, revela a perplexidade que representava a invasão norte-americana para um homem nascido em 1791. É que até o começo do século XIX, para os mexicanos, os Estados Unidos era uma nação distante que pastava em silêncio nas pradarias da costa Leste, bem longe de um país que lutava por constituir-se como Estado moderno após 300 anos de regime colonial espanhol. Puritanos e protestantes das mais variadas tonalidades tinham uma relação respeitosa e ao mesmo tempo íntima e industriosa com uma Divindade que era onipresente mas que não enchia muito a paciência. Em contrapartida, do lado mexicano, muito distinta era a relação de dependência, opressão e complexidade barroca que hoje é visível na arquitetura, na mesa e nas festividades do calendário mexicano. Mas nada é definitivo nem de mão única, porque é destino de toda cidadela que mais cedo que tarde será sitiada […]

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Santa Claus em estado de sítio Nos shoppings da Cidade do México, as músicas natalinas que marcam o estado de ânimo no ambiente aquecido artificialmente sugerem ao passeante distraído que Jesus Cristo (assim como os super-heróis que povoam as telas nos apocalipses hollywoodianos) era cidadão americano. Em algum canto, como uma relíquia pré-moderna, há sempre um presépio com figuras desproporcionadas e animais impossíveis na bíblica Nazaré. Que departamento de marketing conseguiu conjugar a imagem do bonachão nórdico carregado de presentes no seu trenó de renas com a do menino pobre do tórrido deserto do Oriente Próximo? Mais do que os enfeites festivos, no entanto, os corredores lotados me lembram que é a época em que os parentes que durante o ano inteiro enviaram remessas em dólares aos que ficaram por aqui, voltam invadindo os espaços, aggiornando os gostos e os costumes. Pelos bonés e as camisetas largas, é possível intuir que uns vêm do South camponês; as jaquetas acolchoadas e o cabelo engomado demostram vida urbana. Os unifica, no entanto, o iPhone 11, oráculo particular, consultado permanentemente, que dá a sensação de que vêm de uma sociedade tão dinâmica em que tudo é urgente. Mas as sacolas com presentes para a festa de Natal revelam a simbiose com a cultura americana. Observo os brinquedos, e constato que pelo menos não está na moda o boné do colonizador conservador Daniel Boone (outrora popular e ainda hoje disponível no Mercado Livre), cuja heroicização hollywoodiana propiciou um grande massacre de guaxinins para satisfazer o desejo da garotada nos longínquos 60 e 70 do século passado. Enquanto caminho pelos corredores mornos, alheios à frente fria número 25 em que nos encontramos hoje, lembro os versos do poeta romântico Manuel Carpio, que em setembro de 1847 viu flutuar sobre o Palacio Nacional da Cidade do México a bandeira norte-americana – invasão que antecedia a perda de metade do território nacional. Traduzo sem rigor poético: Ruidosa desonra hoje nos oprime Ai! Se tivéssemos seguido teus passos Nunca o pendão das estrelas Flutuaria na cidade de Moctezuma! A estrofe do poeta, membro de La academia de Letrán e um dos fundadores do sistema literário mexicano, revela a perplexidade que representava a invasão norte-americana para um homem nascido em 1791. É que até o começo do século XIX, para os mexicanos, os Estados Unidos era uma nação distante que pastava em silêncio nas pradarias da costa Leste, bem longe de um país que lutava por constituir-se como Estado moderno após 300 anos de regime colonial espanhol. Puritanos e protestantes das mais variadas tonalidades tinham uma relação respeitosa e ao mesmo tempo íntima e industriosa com uma Divindade que era onipresente mas que não enchia muito a paciência. Em contrapartida, do lado mexicano, muito distinta era a relação de dependência, opressão e complexidade barroca que hoje é visível na arquitetura, na mesa e nas festividades do calendário mexicano. Mas nada é definitivo nem de mão única, porque é destino de toda cidadela que mais cedo que tarde será sitiada […]

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