A cartografia de linhas, dobras e sombras de Marina Camargo
Dobras, contornos, fluxos e sombras ressignificam mapas na exposição A Certa Sombra, que Marina Camargo exibe no Instituto Ling, a partir de sábado (1º/7), às 18h. A mostra reúne trabalhos produzidos pela artista desde 2019, propondo reflexões sobre fronteiras, territórios e os modos como representações cartográficas constituem visões de mundo.
“Muitas vezes esquecemos que todo mapa resulta de uma operação de projeção e opera como uma ferramenta de controle (cognitivo, simbólico, técnico ou, efetivamente, bélico). Marina nos ajuda a retomar o estranhamento e a dúvida, levando os mapas a se encontrarem com outra forma de projeção: a sombra”, observa o curador Paulo Miyada.
Um dos trabalhos de maior destaque na exposição é Geografias Desdobradas, uma pintura sobre madeira com mais de 3,5 metros de largura em que um mapa-múndi se revela “quase como um origami, criando outras formas e se aproximando da abstração”, como definiu Marina em conversa durante a montagem da mostra. “Reconstruo o mapa pensando em territórios que se projetam e se multiplicam de forma indiretamente relacionada à geopolítica.”
Geografias Desdobradas tem origem em desenhos de escala menor, que ganharam outras proporções durante as trocas de Marina com o curador da exposição. O trabalho também motivou a artista a retomar sua dedicação à pintura após um longo período explorando linguagens como instalação, escultura, desenho, fotografia e vídeo.
Nascida em Maceió em 1980, Marina se mudou para Porto Alegre aos 9 anos. Cursou graduação e mestrado no Instituto de Artes da UFRGS e vive desde 2015 entre Berlim e Porto Alegre. “A recorrência da América do Sul nos trabalhos tem a ver com isso. Vivendo na Alemanha, é mais comum a atribuição da identidade latino-americana. Como já trabalhava com mapas, me voltei muito para essa forma, com certa curiosidade, abraçando a dúvida sobre o que é ser latino-americana”, reflete a artista, destacando ainda a tradição cartográfica alemã como referência de suas pesquisas.
Contudo, é o deslocamento anterior, entre as capitais de Alagoas e do Rio Grande do Sul, que Marina considera fundador do estar no mundo que se reflete em sua produção: “Olhando em retrospecto, a grande viagem é aquela. A paisagem de Maceió me formou. Sou daquele lugar, mas não sou. Hoje refaço isso, vivendo em dois lugares.”
Os entrelugares subjetivos de Marina encontram no processo de elaboração dos mapas um espaço de reflexão: “Há uma criação envolvida nos mapas. Eles têm precisão, mas a questão toda é a tradução, o tipo de desenho que será usado. É nesse ponto que desenvolvo meus trabalhos, me apropriando e deformando esses mapas e pensando sobre espaços e territórios através dessas representações”.
“Sempre há uma distorção envolvida, a partir de modelos e sistemas de projeção que estruturam visões de mundo. Até hoje, temos uma visão compartilhada da projeção de Mercator, feita no século 16”, completa Marina, mencionando a representação hegemônica dos continentes.
Ao longo do desenvolvimento dos trabalhos e diante do olhar dos espectadores, as formas bi e tridimensionais criadas por Marina adquirem autonomia em relação às referências cartográficas. “É um pouco como os Seis Personagens à Procura de um Autor”, brinca a arista, citando a peça em que Luigi Pirandello reflete sobre os mistérios das relações entre obras, personagens e seus autores.
Partindo de reflexões sobre o movimento dos continentes, Marina desenvolve trabalhos com superfícies maleáveis, como em Re-pangeia – um mapa-múndi de látex que desconstrói a projeção de Mercator – e Mapa-mole (Espectro), em que tiras de borracha recortadas se somam à iluminação para criar uma forma que remete à América do Sul. Em Continentes Dobrados (América do Sul), o uso do latão alude ao colonialismo e à exploração de minérios no Sul Global.
A relação entre território e recursos naturais também ganha destaque no vídeo Farol, em que Marina aborda os afundamentos do solo que impactam cerca de 20% do território de Maceió desde 2018 e que resultaram em um êxodo urbano de aproximadamente 55 mil pessoas. A principal causa da destruição, segundo estudo de 2019 do Serviço Geológico do Brasil, foram as atividades de extração de sal-gema da empresa Braskem na cidade. Em abril de 2023, uma decisão judicial bloqueou 1,08 bilhão de reais das contas da empresa, atendendo a pedido do governo de Alagoas. Recentemente, o programa Greg News compilou um histórico da tragédia, considerada um dos maiores desastres socioambientais em áreas urbanas do planeta.
A região Nordeste também ganha espaço em Esboço Geográfico: Sertão, 2023, que dialoga com a pesquisa Como Se Faz um Deserto – publicada aqui –, realizada em 2013, na qual Marina reflete sobre as noções de “sertão” a partir de viagens pelo Nordeste, textos e fotografias.
Já em Songlines, cinco livros dispostos sobre estantes de partitura apresentam desenhos de fronteiras terrestres entre dois países. Chama atenção a recorrência de linhas retas no volume dedicado à África, evidenciando o traçado colonialista de diversas regiões do continente. Nas páginas da Europa, o traçado da fronteira entre Rússia e Ucrânia segue o de 2019. “Ficou o registro de uma época, já está desatualizado”, aponta Marina.
“Pensei em criar uma espécie de partitura experimental que pudesse ser interpretada livremente. Em 2019, o Marcelo Cabral esteve em Berlim e criou peças a partir dos desenhos de fronteira da Europa e da América do Sul. Em 2021, terminei os outros continentes”, recorda Marina, que convidou Cabral, integrante do grupo paulista Metá Metá, para uma performance inédita de Songlines que será realizada na abertura de A Certa Sombra.
As linhas também se destacam nos desenhos em nanquim sobre acetato da série Distúrbios, produzidos a partir do começo da pandemia de covid-19. “Redesenhei os continentes até criar formas mutantes”, define a artista. Já em Fluxos: Atlas Antiquus, Marina intervém sobre recortes de mapas, sobrepondo um conjunto caótico de formas à ordem da representação cartográfica. “Pensei muito sobre o quanto o trânsito é tão importante quanto o próprio território.”
Na inauguração de A Certa Sombra, após a apresentação solo de Marcelo Cabral, às 18h – gratuita, mediante inscrição prévia no site do Instituto Ling –, Marina Camargo conversa com o curador Paulo Miyada sobre a exposição.
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“A Certa Sombra”, de Marina Camargo
Inauguração: 1º de julho de 2023, às 18h
Visitação: até 23 de setembro, de segunda-feira a sábado (exceto feriados), das 10h30 às 20h
Onde: Instituto Ling (rua João Caetano, 440 – Três Figueiras – Porto Alegre)
Entrada gratuita
sábado, 01 a 23 de setembro de 2023