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Eles não vieram em missão de paz

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Eles não vieram em missão de paz
Confesso minha incapacidade de dialogar com quem despreza a cultura, censura a liberdade de expressão, fecha exposição, depreda obra de arte. Sinto como se falasse uma linguagem totalmente diferente dessas pessoas, da mesma forma que os cientistas tentando se comunicar com os alienígenas de A Chegada – com a grande diferença de que, no filme, as criaturas vieram em missão de paz. Seis meses depois da polêmica em torno da exposição Queermuseu, fechada prematuramente pelo Santander Cultural depois de manifestações conservadoras que viam pedofilia e zoofilia onde havia arte e denúncia, mais uma vez a cultura foi aviltada em Porto Alegre: uma pintura mural em frente ao Instituto Goethe foi danificada na noite de segunda para terça-feira por vândalos, que apagaram com tinta uma imagem da cabeça decapitada de Jesus Cristo, escrevendo por cima as palavras “Ele ressuscitou”. O trabalho do grafiteiro e artista de arte rua Rafael Augustaitz – também conhecido como Rafael Pixobomb – integra a exposição Pixo/Grafite: Realidades Paralelas, que reúne na instituição cultural vídeos, pinturas, gravuras e desenhos do paulistano e do porto-alegrense Amaro Abreu. O grafite no muro do Goethe tem viés de crítica social: a cabeça crística separada do corpo repousava sobre uma bandeja ao lado da imagem de uma aglomeração de casas populares, uma favela, que verte sangue a partir de seu chão. Não precisa ser bidu para concluir que Jesus estava ali como representação da violenta exclusão que ainda aflige milhões de brasileiros e que não poupa inclusive quem ergue sua voz contra a iniquidade – como a figura maior da cristandade, que, segundo a tradição religiosa, morreu na cruz vitimado pela hipocrisia e pelo cinismo e para purgar os pecados da humanidade. Qual seria então a suposta ofensa a símbolo sagrado e a crença nessa representação – sem dúvida impactante e violenta? Afinal, o Cristo crucificado, ícone de potente e terrível conteúdo há muito naturalizado na paisagem cotidiana, não denuncia exatamente a mesma coisa? O problema, claro, é que essa gente que quer dançar em torno da fogueira acesa com livros e pinturas não está para conversa – diferentemente dos ETs tentaculares de A Chegada. O direito de não gostar, discordar e inclusive boicotar é um tesouro inalienável do estado de direito democrático – portanto, ninguém é obrigado a apreciar e aplaudir aquilo que não lhe satisfaz. Porém, impedir unilateralmente que os outros tenham acesso a ideias e expressões que nos desagradam, mas que não infringem a lei, é um ataque a esse fundamento pétreo das sociedades civilizadas. Esse tipo de reação censuratória, característica do fascismo, suprime o debate em nome de uma imposição arbitrária de conceitos abstratos e supostamente superiores à liberdade de pensamento – a religião, a família, a tradição, os bons costumes, a moral. Mas aqui estou rodando em círculos no limite das concepções iluministas que aceito e acredito universais. Esses argumentos, entretanto, nada significam para a turma do archote na mão: se considerarem aquela performance obscena, aquela tela blasfema, aquele artista degenerado, fogo neles! Há muita ingenuidade […]

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