Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha

Gaza não é pra fracos

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Gaza não é pra fracos

Se existem dois povos com uma convivência dramática, eles são os israelenses e palestinos. Desde 1948, desde antes, e desde sempre, o fato de povos com uma enorme história, memória e muitas dores acumuladas viverem tão próximos, sobrepostos, de certas formas, tem resultado em sangue e lágrimas, de todos os lados.

Por uma das muitas ironias com que a humanidade nos brinda, eles teriam muito para contribuir uns com os outros, e pro mundo, mas as circunstâncias e o radicalismo quase inevitável torna essas proximidades em algo como um conflito permanente, um dos que sobreviveram ao final da Guerra Fria. No Oriente Médio, guerra pode ser tudo, menos fria.

No meio disso tudo, a partir desse cenário tenso, injusto, mas altamente narrativo, Israel liga a sua máquina produtora de boas séries e cria Fauda, já em terceira temporada, que acaba de sair na Netflix.

Fauda quer dizer “caos”, e a série se esforça pra fazer jus ao nome, embora o caos tenda a favorecer o lado israelense da narrativa. Como eles são quem narram, isso faz mesmo diferença. Quem narra, mais do que quem paga as contas, define o que acabamos por sentir sobre o conflito.

A história está centrada em um grupo das forças especiais israelenses que vive infiltrado nas áreas palestinas próximas a Israel, ou semi-ocupadas por Israel. O grupo é feio, sujo e malvado, e cumpre a missão, com algumas perdas no caminho.

Existe algo na série que escapa o bem contra o mal bipolar que os americanos costumam produzir. Os palestinos perdem, mas a gente não deixa de entender o que vivem e por que lutam. Ao mesmo tempo em que defende o ponto de vista israelense, e seria estranho se a série não fizesse isso, ela não torna o outro lado apenas uma máquina de moer e ser moída. Os palestinos sofrem, e muito, e compreender esse sofrimento nos faz ver o lado deles como mais um lado, e não apenas os maus, lutando porque sim.

Ao mesmo tempo em que a série nos narra pelo ponto de vista de quem controla, e tem o poder real, ela deixa claro que o real vitorioso nisso tudo é a irracionalidade, a violência, o populismo, de todos. Mas, enquanto a justiça não triunfa e os participantes desse drama histórico não encontram uma forma menos barbárica de convivência, a vilolência precisa ser resolvida na forma que ela entende, ou seja, violenta.

Não faltam tiros, não faltam mocinhos e bandidos, não faltam injustiças dolorosas, não faltam cenas de tensão e não faltam, infelizmente, cenas de amor, que parecem estar lá mais pra preencher o tempo e adicionar alguma emoção que não seja expressa em granadas e mísseis Scud caindo em vilarejos indefesos. Entendemos que essas pessoas são pessoas, têm carências, têm medos e famílias, mas, sinceramente, não é por isso que vemos a série. Humanizar esses robôs não os torna mais humanos e rouba tempo de ação, que é o que nos puxa pra série.

Eu acho que ela deve ser vista. Ver as ruelas sem pavimentação de Gaza, as noites sem eletricidade, a opressão que todos vivem, de todos os lados, vítimas quase todos de algo que não criaram, e ainda assim não têm como escapar, nos dá uma compreensão do que acontece por lá que a imprensa não dá, o cinema muito menos.
Fauda é uma série onde não existem mocinhos, mas apenas gente fazendo o que mais ou menos entende que precisa fazer para que seu sistema, sua comunidade não desapareça da Terra.

Essa é talvez a maior conquista de Fauda. Assistindo, vemos que as melhores intenções se dissolvem no mar de ódios em que todos estão imersos. Não é por falta de boas pessoas que esse mar de torna tão presente, tão permanente. É pelo fato de haver tanta dor, tantas pessoas más dispostas a transformar essa dor em correntes, e tanta, mas tanta gente acorrentada ao passado, às tradições, às mágoas e ao desejo de vingança.

Mais do que mostrar o lado israelense do conflito, Fauda demonstra o seu lado desumano. E disso, ainda mais nessa época, nós, brasileiros, entendemos.

Veja.



   

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