Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Televisão

Um muçulmano em Nova Jersey

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Um muçulmano em Nova Jersey Ali Malik (Mahershala Ali) e Ramy (Ramy Youssef) em cena de "Ramy". Foto: Craig Blankenhorn, Hulu/Divulgação

Como diz Marty, a zebra em Madagascar, cheia do desprezo nova-iorquino por todas as coisas de Nova Jersey, lá é o lado errado da vida. Ramy, de várias formas, é uma história sobre a tentativa de estar do lado certo, mesmo vivendo no lado de Jersey, ou do lado escuro da Força. Algo como tentar ser alguém iluminado vivendo em Guaíba, em uma tradução porto-alegrense do que se passa com os seres em Ramy. Algo assim.

O que surpreende em Ramy, mais do que tudo, é a honestidade. O autor, em uma história semibiográfica, vai lá e mostra, diz, prova. Sendo ele muçulmano, e sabendo muito bem dos sentimentos que a sua cultura produz no meio americano onde tenta viver como um igual diferente, ainda assim ele solta a mão e não poupa a sua própria cultura, a sua própria gente, das suas muitas incongruências.

Um tio, muçulmano da velha escola, é profundamente misógino, profundamente antissemita, e Ramy não nos poupa de ver, de perto, a vida do tio, sua visão de mundo, todo o horror que ele representa. Pense você, estimado leitor, estimada leitora, estimadx leitxr, se você fosse escrever e produzir uma série sobre brasileiros em Nova Jersey, você iria fundo em apresentar a nós pelo que somos?

No primeiro episódio da primeira temporada, Ramy sai com uma garota muçulmana que pede a ele, no carro, que a sufoque enquanto ela se masturba. Kinky as hell e, ainda assim, Ramy vai lá e mostra. Honestidade é isso, camaradas, e por isso, acho, Ramy é a série cultuada que é, já em segunda temporada, indo para a terceira.

O que eu sinto, vendo Ramy, é um incômodo sincero. Não consigo entender por que um jovem americano de origem egípcia busca manter a sua identidade através de um religião tão arcaica nas práticas. Por que ele precisa tentar, por que deseja tentar ser um seguidor de algo tão impossível quanto uma religião que nega boa parte da natureza humana, quando não está negando outras coisas?

Não que as outras religiões não façam isso, ou tentem. Mas, no Ocidente, onde vivemos, e onde Ramy vive, a gente teve sucesso na duríssima missão de separar estado e igreja, basicamente o que nos trouxe até onde chegamos. No Oriente muçulmano, igreja é estado e a vida é infernal exatamente por isso. Aqui, onde setores arcaicos tentam reproduzir esse modelo, nos tornando cristãos de araque à força, ele é um fracasso anunciado, que degela no primeiro Carnaval.

Por que Ramy busca isso, quando não precisa?

Esse é o mistério da fé, e fará bem a quem assistir a essa bela série da Hulu. Pessoalmente, prefiro muito ver Fleabag, onde uma jovem secular inglesa tenta iniciar um romance com um padre católico. Ela não quer nada da fé dele, quer apenas o pescoço, que acha lindo. De alguma maneira, essa me parece uma relação mais saudável com a religião do que a que Ramy tenta. Mas, quem sou eu pra achar o que quer que seja?

Vejam, e achem vocês mesmos. Ramy mais do que vale a pena.

Vejam.

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