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Um documentário para celebrar o Festival de Brasília

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Um documentário para celebrar o Festival de Brasília Letreiro do Cine Brasília. Foto: Metropoles.com/Divulgação

A 53ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro começou nesta terça-feira (15/12). Por conta da pandemia do novo coronavírus, não serão realizadas atividades presenciais: o público poderá acompanhar os filmes pelo Canal Brasil e na plataforma de streaming Canais Globo.

O mais antigo festival de cinema do Brasil – e um dos mais importantes eventos do gênero no país – segue até 20 de dezembro. Foram selecionados 30 filmes nacionais, entre 698 inscritos, para as mostras oficiais.

No Canal Brasil, disponível na TV por assinatura, serão exibidos os longas em competição – as sessões ocorrem sempre às 23h. Já os curtas da seleção oficial e os títulos da Mostra Brasília estarão disponíveis na plataforma Canais Globo durante o festival.

Palco de exibição do melhor da produção cinematográfica nacional e de acaloradas manifestações políticas e culturais, o Festival de Brasília tem enfrentado atribulações institucionais nos últimos tempos. Neste ano, o evento foi precedido por polêmicas, como o anúncio em junho da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal cancelando o festival por falta de verba – decisão revogada pelo governo três dias depois dessa notícia.

O curador do Festival de Cinema de Brasília de 2020 é o cineasta Silvio Tendler. Um dos mais importantes documentaristas da América Latina, o realizador produziu e dirigiu cerca de 80 filmes como os antológicos documentários Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1981), Jango (1984) e Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil (2003).

48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Foto: Metropoles.com/Divulgação

O documentário, aliás, é um das marcas da 53ª edição do evento: cinco dos seis títulos em competição na Mostra Oficial de Longa-Metragem são do gênero. Um dos destaques da Mostra Brasília é justamente o doc Candango: Memórias do Festival, longa de estreia do diretor brasiliense Lino Meireles.

Realizado com recursos próprios, o filme reúne depoimentos de cineastas, atores, organizadores, jornalistas e profissionais da arte e da fotografia para contar a história do evento criado em 1965 pelo crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes. As filmagens somaram 65 horas de entrevistas realizadas em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Recife.

Diretores como Ruy Guerra, Neville D’Almeida, Lúcia Murat, Helena Ignez, Vladimir Carvalho e Cacá Diegues, além de outros veteranos, juntam-se a nomes da nova geração de diretores e atrizes como Maeve Jinkins, José Eduardo Belmonte, Juliano Cazarré, Claudio Assis e Rodrigo Santoro para falar da importância do Festival de Brasília para o cinema brasileiro, relatando experiências vividas em suas participações no tradicional evento.

O projeto inclui ainda um livro de mesmo título, lançado há três anos na 50ª edição do festival, e um banco de dados com informações de todas as edições do evento. Para assistir a Candango: Memórias do Festival, é só acessar a plataforma Canais Globo e clicar no Canal Brasil. Caso não seja assinante, é preciso realizar o cadastro prévio.

Na entrevista exclusiva a seguir, o realizador Lino Meireles fala de seu filme, do Festival de Brasília e do futuro do audiovisual no país: “Na versão pessimista, assistimos, na década de 1960, 1990 e agora 2020, que sempre que o audiovisual brasileiro consegue se firmar, algum duro golpe nas políticas públicas o derruba. Na versão otimista, vemos que nenhuma dessas tentativas conseguiu matar de vez o cinema nacional. O legado do Festival de Brasília, e de nosso cinema, é de resistência”.

Lino Meireles. Foto: Felipe Menezes/Metrópoles/Divulgação

Vocês reuniram 65 horas de entrevistas. Quais foram os critérios narrativos adotados no roteiro e na montagem para organizar esse material todo no filme?

A decisão de fazer o filme com uma linguagem de fácil compreensão foi feita logo no início, para que ele pudesse ser visto por um grande público, apesar de ser um assunto bem específico. Muito do que o filme tem a dizer já é entendido por quem faz cinema: a dificuldade de realização no país, as reflexões que nosso cinema traz sobre a nossa existência… Busquei unir a memória afetiva com um panorama histórico para unir quem participou do festival e quem não participou. Após muita decupagem do texto e uma pesquisa inicial de material de arquivo, que até resultou num livro, escolhi vários segmentos que poderiam compor o filme. Aí afunilamos a pesquisa e foi com o material de arquivo que fiz a seleção final. Os segmentos que tiveram um resultado mais rico de arquivo foram priorizados. Por um lado, segmentos interessantes ficaram de fora. Por outro lado, foi um critério importante para conseguir focar. Falamos com mais de 60 pessoas, e foi pouco. É uma história muito rica, muito grandiosa. Meu consolo foi que sabia que se falasse com 200, com 300 pessoas, ainda seria pouco.

Ao se referirem ao Festival de Brasília, os entrevistados em sua maioria são praticamente unânimes ao qualificá-lo como sendo o mais político do país. De que maneira você definiria o evento? Qual é a importância do Festival de Brasília?

A importância do festival é o amor que fica. Comecei o projeto sem grandes ambições, como um assunto local, de Brasília. Eu nunca havia feito um longa-metragem e não tinha nenhuma história com o festival, exceto como espectador. Tive interesse em valorizar algo da minha cidade. Achava que a época do festival chegava, todo mundo aproveitava, e depois de uma semana não ficava nada. Só que todo mundo topava falar. Diretores, produtores, atores, organizadores, críticos… Entrei nas casas das pessoas, bati papo com famílias, fiz as perguntas que eu queria… Surreal. Toparam não porque eu estava fazendo meu filme, mas porque o meu filme era sobre o Festival de Brasília. O reconhecimento da importância política que viveram lá e do amor que ainda carregam pelo evento.

Outro aspecto destacado no filme é a relevância do festival para o desenvolvimento do audiovisual em Brasília. Como realizador brasiliense estreante em longa, você também se considera um herdeiro desse legado?

Bem, nesse caso, a relevância é total, porque meu primeiro longa-metragem é sobre o próprio festival! Sem ter tido aquele momento de eureca, de perceber que a história do festival era a história do nosso cinema, e que isso precisava ser apresentado, não faço ideia de quando faria um filme. De vez em quando me sinto conflitado por não ser nem historiador e nem um diretor estabelecido o suficiente para fazer um filme com um significado tão importante. Se o filme é bom ou ruim depende do gosto de cada um, mas sei que, por ser o primeiro a abordar o assunto, talvez o primeiro sobre um festival de cinema brasileiro, ele tem uma devida importância. Fiz o filme do jeito que queria, e espero que ele traga atenção ao festival e aos filmes que passam lá. Assim como para a dificuldade de se fazer cinema no Brasil.

José Paulo Lacerda/Divulgação

Quais foram as maiores dificuldades para a realização do filme?

Essa é uma pergunta fácil de responder: a busca por material audiovisual de arquivo. Coberturas jornalísticas em papel impresso e fotografias apareceram facilmente. Tive a sorte de poder contar com excelentes pesquisadores, Antonio Venancio no Rio e Kadidja Oliveira em Brasília, e por isso o filme existe. As questões que assolam a Cinemateca Brasileira e a EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) ficaram visíveis no último ano, mas são problemas recorrentes. Quem mexe com preservação audiovisual no Brasil merece status de herói. Fazem por amor, porque o descaso por eles é grande. Já falei isso antes, o nosso patrimônio cultural é igual a Amazônia: vasto e de importância internacional. Mas todo santo dia some um pouquinho. Outro detalhe difícil eram os próprios dados das edições do festival. Não existia uma database online. Era mais fácil achar listas de vencedores do que de todos os participantes. Era algo que eu quis remediar também, por isso, depois das filmagens, montamos outra equipe para criar uma enciclopédia digital do Festival de Brasília, o FBCBusca, acessível em www.metropoles.com/FBCB. É outro projeto contínuo, feito de forma independente.

O documentário também mostra os momentos de crise enfrentados pelo festival e críticas ao evento. Você chegou a receber pedidos para amenizar as passagens mais críticas do filme?

Não houve pedidos de interferência, até porque é um filme independente e ninguém o assistiu antes da estreia em festivais, exceto pela equipe de pós e algumas pessoas próximas. O documentário tem o viés de que é feito por alguém que o admira, de alguém que é fã e que acha sua história uma parte essencial do cinema brasileiro, então nunca achei que alguém ficaria preocupado com o filme. Um episódio que eu pretendia trazer para as telas, mas que abandonei logo, foi o ano em que o festival aconteceu num shopping de Brasília, em salas comerciais. Tentaram algo novo, querendo atingir um público alheio ao festival e, depois, ninguém gostou. Ficou de fora por não acharmos material de arquivo audiovisual daquele ano e por não haver um acontecimento mais detalhado que falasse pelo todo. Uma decisão puramente narrativa.

Como tantos outros eventos culturais no país, o Festival de Brasília vem enfrentando dificuldades nos últimos anos, agravadas em 2020 com a pandemia, que chegou a ameaçar sua realização. Como você avalia o festival atualmente?

Uma das declarações que mais me afetaram na produção veio de Jean-Claude Bernardet, que disse que o Festival de Brasília surgia como um claro foco de resistência democrática e que, com a redemocratização, o festival teria uma crise. Só que muita coisa aconteceu depois, incluindo o fim da Embrafilme, a Retomada e até o estabelecimento do cinema pernambucano como uma das maiores forças do cinema nacional. Tudo isso apareceu no Festival de Brasília. E, nos últimos anos, vemos que a luta pela democracia é permanente, e nada é garantido. A identidade do festival é garantida por questões além dele.

Foto: Metropoles.com/Divulgação

Falando em conjuntura nacional, como você vê o futuro próximo do audiovisual brasileiro, paralisado na prática pela ausência de políticas públicas para o setor por um governo federal conservador e autoritário francamente hostil à arte, à cultura e ao conhecimento?

Não existe, na história humana, um episódio bem avaliado de hostilidade à arte, à cultura, ao conhecimento por um governo. É um esforço estúpido e desnecessário, fadado à derrota. No curto prazo, essa perspectiva histórica é de pouco conforto, eu sei. Enquanto montava, percebi que esse documentário tem duas vertentes opostas que são expostas simultaneamente, por mais estranho que isso pareça. Na versão pessimista, assistimos, na década de 1960, 1990 e agora 2020, que sempre que o audiovisual brasileiro consegue se firmar, algum duro golpe nas políticas públicas o derruba. Na versão otimista, vemos que nenhuma dessas tentativas conseguiu matar de vez o cinema nacional. O legado do Festival de Brasília, e de nosso cinema, é de resistência.

Voltando à quantidade de material reunido para o filme: não há planos de desdobrar o documentário em uma minissérie a partir dessa pesquisa?

O festival é um evento contínuo, e o documentário é um pequeno retrato. Mesmo assim, muita coisa ficou de fora, e tenho a intenção de disponibilizar online, no futuro próximo, todas as entrevistas, na íntegra. O primeiro roteiro do filme, que depois lancei em formato de livro, e tem tudo que se refere ao festival, é gigante. Fizemos um exercício de montagem e teve 10 horas de duração, isso sem nenhum material de arquivo. Existe portanto interesse em uma minissérie, mas minha participação seria de produtor. Minha visão já está no documentário, será mais interessante ver a de outras pessoas.

Cartaz do filme. Foto: Metropoles.com/Divulgação


Candango: Memórias do Festival: * * * *

COTAÇÕES

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Assista ao trailer de Candango: Memórias do Festival:

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