Synapse Distribution/Divulgação
Indicado ao Oscar de Melhor Documentário em Longa-Metragem, As 4 Filhas de Olfa (2023) é um filme prodigioso. A diretora e roteirista Kaouther Ben Hania conta a história de uma mulher tunisiana e sua família misturando memória, dramatização e autoficção de maneira singular e envolvente, reconstruindo em cena uma jornada íntima de esperança, rebelião, violência, transmissão e sororidade.
Ganhadora do prêmio Golden Eye de documentário no Festival de Cannes do ano passado, a cineasta tunisiana reconstitui a trajetória familiar da protagonista utilizando recursos documentais e ficcionais: as duas filhas mais velhas que desapareceram são interpretadas por um par de atrizes, que interagem com as verdadeiras filhas caçulas, enquanto a própria Olfa alterna-se na frente da câmera com uma atriz que a substitui na recriação de cenas mais dramáticas ou traumáticas. Já todos os personagens masculinos são vividos pelo ator Majd Mastoura.
Kaouther Ben Hania conta que a ideia para esse docudrama híbrido surgiu em 2016, quando estava terminando um outro projeto, o documentário Zaineb Hates the Snow (2016) – que também abordava uma família de uma mãe e quatro filhas: “Ouvi Olfa falando no rádio sobre a trágica história de suas filhas. Sua história me intrigou e me emocionou. Olfa me fascinou desde o início. Vi nela uma personagem poderosa para o cinema. Ela era a personificação de uma mãe com todas as suas contradições, ambiguidades e problemáticas. Tive vontade de explorar e entender o seu lado, então liguei para o jornalista (da emissora de rádio) e ele me deu o número de telefone para que eu pudesse falar com ela. Foi assim que tudo começou”.
As 4 Filhas de Olfa quase não foi finalizado: nas primeiras filmagens, que ocorreram apenas com Olfa e as duas filhas mais jovens, Kaouther percebeu que não estava capturando um momento genuíno da história daquela família. A realizadora então pausou o projeto, lançou o ótimo drama O Homem que Vendeu Sua Pele (2021) – indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional – e, por fim, voltou ao documentário.
Dessa vez, incorporou três atrizes ao projeto: Nour Karoui e Ichraq Matar para encarnar as filhas desaparecidas, Hend Sabri para interpretar a própria Olfa. A cineasta comenta que a inserção dessas três personagens foi essencial para registrar os momentos mais íntimos de sua personagem central: “Olfa precisava ser confrontada por atrizes profissionais, que serviriam como guia para que ela e suas filhas encontrassem sua verdade interior e, dessa forma, entendessem alguns dos principais acontecimentos de sua vida. Não era a reconstituição das suas próprias memórias que me interessava, mas a troca entre todas elas. Ao fazer perguntas sobre detalhes específicos, Hend Sabri permitiu que Olfa refletisse sobre seu passado. Se Olfa tivesse ficado sozinha comigo, ela teria simplesmente contado a mesma história novamente”.
É justamente nessa convivência íntima entre personagens e atrizes e nas impregnações mútuas entre lembranças, versões e reconsiderações que reside o vigor narrativo e a criatividade metalinguística de As 4 Filhas de Olfa. Confrontada pelas opiniões das atrizes e das filhas, a expressiva Olfa rememora e reavalia suas escolhas de vida, alegrias, tristezas e ressentimentos, tendo o espectador como voyeur dessa espécie de psicodrama cinematográfico entre luzes e trevas. Curiosamente, há lugar para bastante humor e até risadas nessa dolorosa reconstituição familiar.
Para além da exploração sensível e inteligente desse dispositivo fílmico – que lembra experiências similares como o antológico documentário brasileiro Jogo de Cena (2007), do mestre Eduardo Coutinho –, As 4 Filhas de Olfa aborda temas contundentes em diferentes camadas interpretativas: os embates geracionais, a opressão feminina em um ambiente patriarcal, a intolerância do fundamentalismo religioso, as complexas e por vezes contraditórias visões que as mulheres têm de seu papel dentro de uma sociedade conservadora, as tensões entre laicismo e islamismo.
As 4 Filhas de Olfa: * * * * *
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