Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

“Deadloch”, e com as mulheres não se brinca

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“Deadloch”, e com as mulheres não se brinca Amazon Prime Video/Divulgação

“Respeitem as mina.” Esse é um cartaz que eu vi em Porto Alegre, de passagem por uma das ótimas cervejarias da cidade. E é a primeira coisa que vem à mente enquanto ligo a minha, a sua, a nossa Amazon Prime Video e acesso a série australiana Deadloch, cuja primeira temporada acaba de encerrar.

Uma das mais importantes mudanças que a era das séries nos trouxe foi o protagonismo das mulheres na criação, produção e realização das séries. Girls, da HBO, já era um exemplo. Criada e executada por Lena Dunham no distante ano de 2012, ela era por, sobre e mais ou menos para as mulheres, mesmo que brancas e privilegiadas do Brooklyn nos anos 2010.

Orange Is the New Black, de 2013, também era a criação da roteirista Jenji Kohan e construída sobre a história de mulheres em uma prisão nova-iorquina. Fleabag é a construção feita por uma mulher genial, Phoebe Waller-Bridge, mais ou menos sobre si mesma. Já I May Destroy You é sim sobre outra criadora genial, Michaela Coel, e certamente feita sobre ela mesma. Outro dia, listando grandes criadores do cinema no século 20, vi que era tudo homem! As séries representam o novo, em mais de uma maneira.

E Deadloch é a vez de duas Kates, McCartney e McLennan, lá da distante Austrália, nos trazerem uma série basicamente sobre mulheres, em suas diferentes formas de manifestar as suas frustrações. Nesse caso, a série é sobre alguém que se manifesta assassinando homens.

Deadloch remete diretamente para a clássica Twin Peaks, mas mais ou menos ao contrário. O primeiro corpo que aparece é de homem, e quem investiga são mulheres. O tom narrativo é semelhante a Twin Peaks, e poderia ser chamado de comédia se não fosse trágico, e de surreal, se não fosse – bom – real. No site IMDB, ela é descrita com comédia noir feminista. Humm. Fora a parte que insinua que o feminismo consiste basicamente na eliminação de homens desagradáveis, até que parece uma boa descrição.

O resultado é uma história em que você não se sente exatamente em terra firme. A policial responsável por investigar o assassinato inicial, e os que se seguem, é uma sargento da pequena força policial da cidadezinha de Deadloch, a quem é imposta a presença da detetive Eddie Redcliffe, vinda de um lugar maior e mais especializado no combate a crimes. Como ela se chama Eddie, antes da chegada acreditam que ela será um homem. Apesar de claramente não ser homem, ela se comporta de forma tão abusiva e desagradável que poderia ser um homem e, quem sabe, ainda ter um final tão trágico como o deles.

A sargento, Dulcie, é casada com a veterinária Cath, e ambas fugiram da vida agitada de Sydney para recomeçarem o casamento no cenário idílico de Deadloch. Cath não parece muito disposta a compreender que casamento é importante, mas assassinatos em série assumem uma certa prioridade. Se existe uma definição de comportamento passivo-agressivo, seu nome é Cath.

Deadloch, por vários motivos, se viu ocupada por uma crescente comunidade de mulheres, várias delas lésbicas, e os homens reagem como deles se espera – com bebedeiras e rudezas. Alguns, vários, surgem mortos, todos da mesma e horrorosa forma.

O humor ocorre nas falas, mais do que nas cenas, embora muitas sejam até bastante divertidas. A prefeita de Deadloch, claro, resolve estimular a economia local com uma celebração de tudo que é woke, chamada Feastival. Woke é como a direita chama tudo que não entende, ou que se segue ao movimento hippie. O Feastival é, por isso mesmo, hilário, pelo menos enquanto corpos não começam a aparecer por todos os lados.

Escrita por mulheres, atuada essencialmente por mulheres, e sendo classificada como uma obra feminista, o que se pode compreender do que isso tudo signifique? Os homens são mesmo tão patéticos quanto parecem ser? A Austrália é mesmo tão estranha como parece ser? Ao longo da história, o que se desenvolve é um novo mundo, onde os homens são as vítimas e terminam por sentir medo – medo do desconhecido e medo das mulheres.

No mundo como ele ainda é, as mulheres têm motivos para terem medo dos homens. Deadloch inverte a equação. Talvez esteja aí a sua razão de ser. Não é certo, nem justo, que o medo seja monopólio de um lado. Talvez, para os homens aprenderem o que causam, seja preciso eles mesmos passarem por alguns traumas.

Pode ser, talvez deva ser. Eu não sei ao certo o que achar disso.

Deacloch é muito boa, por tudo isso e pelo seu jeito meio doido de narrar. Vejam e achem.

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