Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

E o problema eram os fungos

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E o problema eram os fungos HBO Max/Divulgação

The Last of Us é boa de doer. Doer talvez não seja a palavra mais adequada, já que a série está recheada de dores, mas isso não tira da série o que ela é: uma das melhores coisas que eu, você, o senhor aqui ao lado podemos ver nestes tempos.

Como todos estão roxos de saber, a série da HBO Max evoluiu de um game bastante popular e virou o que virou. Eu nunca vi o game, espero não ter que ver. O meu filho de 11 anos declarou que tem sérios planos de se tornar um rato de games, e de alguma forma esse não era o plano que a mãe e eu tínhamos para o infante.

A humanidade sempre teve lá o seu fascínio pela ideia de se exterminar todinha e, em alguns momentos da História, estivemos por um triz. Há uns 65 mil anos, um vulcão explodiu em Sumatra e sobraram apenas uns 5 mil dos nossos antepassados no mundo todo. No terrível século 14, o da peste bubônica, imagina-se que 40% dos europeus tenham morrido, sem fazer ideia do que estava acontecendo, ou pelo menos das causas. Antibióticos (que por sinal vêm de fungos) teriam resolvido o problema. A influenza de 1918 foi o que foi, recentemente vivemos a Covid-19, causada por vírus, que parece ser o problema do pessoal em The Walking Dead. Perigos, os há em toda parte.

No caso de The Last of Us, um fungo evolui e nos acerta em cheio. Deve ter a ver com o aquecimento global, ou algum outro desastre produzido por humanos, como o tofu, a música do Los Hermanos ou os tomates secos. Vai saber.

Na verdade, estimados leitores, o que interessa nessas histórias raramente é o fungo. Ele está lá por dois motivos: acabar com a humanidade e dar origem à série, e, portanto, é um apenas um culpado útil, nada pessoal. O que interessa, de verdade, é o que acontece com quem não morre.

A humanidade é civilizada por detalhe. Tirem o nosso banho e a gente já começa a nutrir impulsos assassinos. Tirem o semáforo do cruzamento e, em segundos, estamos jogando extintor de incêndio uns nos outros. Imaginem a gente sem o supermercado, a água na torneira e, muito pior, sem wi-fi?

É isso que The Last of Us nos convida a fazer, como livros, séries, filmes e as guerras mundiais fizeram. O que seria de nós se a gente tivesse que lutar pela vida contra basicamente tudo lá fora? Especialmente contra os outros humanos, que se organizam pra sobreviver à custa de um grau maior ou menor da perda da própria humanidade?

Na série, dois personagens superdotados em carisma, o ator queridinho de todos, Pedro Pascal, que faz o durão de coração mole Joel, e a lindinha da Bella Ramsey, que faz a garota esperta e possível fungicida Ellie, tentam ir de um lugar para outro, atravessando o mar de dificuldades que uma hecatombe nos traz. Vivemos isso com eles, torcemos para que nem todos que se aproximam deles, e por quem nos afeiçoamos, morram. Só que eles morrem.

O que importa são os humanos. Os fungos são fungos, estão lá pra aparecer na hora certa e virar o plot. Pessoalmente, não gosto dos monstros de The Last of Us. Eles se movem rápido demais, não se prestam pra levar um tiro ou machadada numa boa, como em The Walking Dead, não nos dão tempo pra lidar com a ameaça, e parecem implausíveis demais, até pra fungos.

A série funciona porque é humana, porque os flashbacks são muitíssimo bem construídos – era a única coisa boa em uma série como Lost, são enriquecedores em The Last of Us, porque nos fazem perceber tudo que perdemos com o desastre.

A vida, estimados leitores, é bela. Tem fumaça, tem cachorro latindo na noite, tem gente que insiste em levar o JBL pra praia, tem racistas e outros idiotas, tem dor de cotovelo, tem frios gelados, tem o calor porto-alegrense, tem os mosquitos, mas, de algum jeito, e apesar de tudo, ela é e pode ser sublime. Nada é tão bom quanto o normal. Nada é tão gostoso como o conforto sem contas atrasadas. Nada é tão bom quanto ver um filho crescer, alguém de quem gostamos nos fazer cafuné, ler sentado numa varanda.

A quebra com essa possibilidade do normal nos faz ver como ele é bom, e quanto ele faz falta. Eu assisto aos episódios de The Last of Us assim: com algo gelado pra beber, com algo macio onde sentar, se possível, com a janela aberta pra sentir os cheiros da rua, as provas incontestes de que o mundo segue firme e forte lá fora.

The Last of Us nos faz pensar no mundo, na vida e em como a gente precisa lutar pra deixar tudo mais ou menos como está, antes que acabe. Fica a dica.

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