Entrevista

O belo perturbador de Gideon Mendel na enchente de Porto Alegre

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O belo perturbador de Gideon Mendel na enchente de Porto Alegre Foto: Anna Ortega

Há 17 anos Gideon Mendel, fotógrafo sul-africano radicado em Londres, começou um projeto: fotografar locais e pessoas atingidas por enchentes e incêndios florestais. De lá para cá, Mendel já esteve em mais de 10 países, fotografando alguns dos piores desastres climáticos do século até agora. Ele esteve no Brasil entre os dias 15 e 26 de maio para acompanhar de perto a enchente que assolou Porto Alegre e outras regiões do estado. 

Conversei com ele no início da noite de uma segunda-feira chuvosa, no hall do hotel em que estava hospedado. Após uma longa jornada fotografando sob circunstâncias inóspitas, Mendel estava visivelmente cansado – mas um cansaço que, pelo seu olhar e empatia, deixava transparecer que não era apenas pelo trabalho em si, carregando equipamentos e vagando em busca do clique perfeito em meio às águas, mas principalmente pela dureza de ver a situação vivida pelas pessoas na cidade. Em mais de uma ocasião, ele se desculpou dizendo que sua cabeça já não estava funcionando direito. “É quase como se fosse um superpoder estranho, perverso, de levantar dia após dia e trabalhar nessa paisagem de trauma”, comenta ao compartilhar sua trajetória pessoal e profissional. 

Com as fotografias que compõem Flood / Fire, Mendel quer provocar os espectadores acerca das questões climáticas. Conforme conta, seu desejo é que as pessoas “olhem e olhem novamente”, se sintam desestabilizadas, desacomodadas. O que ele produz é diferente de um registro fotográfico objetivo e distanciado, e inquieta quem está do outro lado das imagens. Uma das séries principais sobre enchentes são os Submerged Portraits [Retratos Submersos], com pessoas que aceitam posar diante ou dentro de suas casas devastadas e ainda cheias de água. Muitas delas estão entrando pela primeira vez em seus lares depois de perderem tudo. 

Na entrevista a seguir, o fotógrafo compartilha com muita honestidade suas impressões sobre a enchente em Porto Alegre. Conta sobre como foram seus dias de trabalho até o nosso encontro, como o projeto se desenvolveu ao longo dos anos e sobre as polêmicas que rondam sua produção – fotografias marcadas pelo cuidado estético, muito bem construídas, mas que registram momentos marcados pela destruição e dor alheia. Suas imagens carregam uma característica que é própria do mundo da arte: são um convite à reflexão pela via do sensível, e não do racional. E é por isso mesmo que permanecem na memória. 

Foto: Anna Ortega

Como você conseguiu chegar até Porto Alegre no meio desse caos? O aeroporto estava fechado, inúmeras estradas e pontes bloqueadas.

Na quinta-feira, dia 5, eu deveria ter ido à Suécia para para participar de uma grande exposição coletiva, em uma instituição muito bacana que financiou meu trabalho. Fiz uma videoinstalação de cinco canais chamada Deluge. É uma peça que reúne todo o trabalho de vídeo que fiz ao longo dos anos do meu projeto Flood / Fire (2018). Para a exposição sueca, a instituição me financiou para atualizá-la com material mais recente – da Carolina do Sul (2018), do Paquistão (2022) e da Nigéria (2022). Então foi uma grande coisa não ir. Mas eu vi a notícia [sobre o Rio Grande do Sul] e comecei a pensar e pesquisar a respeito. Primeiro pensei: “não, não posso ir, é uma loucura”, e depois vi a escala que estava tomando e pensei: “realmente tenho que tentar chegar lá”. E aqui estou.

Você já havia ouvido falar daqui antes? 

Para ser sincero, não conhecia Porto Alegre. Não sabia que era a quinta maior cidade do Brasil nem que faria tanto frio – quando você está na água, é especialmente frio. Mas já trabalhei no Brasil antes, há muito tempo. Trabalhei muitos anos com o HIV e a AIDS, e ajudei a criar uma organização chamada Through Positive Eyes, que trabalha com pessoas soropositivas para contarem suas próprias histórias. Em 2009 ou 2010, fizemos um workshop no Rio e trabalhamos com um fotógrafo brasileiro, Ricardo Funari, que se tornou meu amigo. Em 2015, fui às enchentes de Rio Branco, no Acre, e o convenci a ir comigo, para me ajudar. Nesta viagem, ele não pôde, mas recomendou a Anna Ortega, que está me assistindo em Porto Alegre. Anna sugeriu um caminho para entrar na cidade, vindo por Floripa. Não foi difícil, mas foi uma longa viagem. 

Quais lugares da cidade ou região metropolitana você já visitou? Em alguma outra cidade você chegou a ver áreas tão centrais e importantes da cidade inundadas?

Primeiro, o centro da cidade foi meu foco. Fiquei muito impressionado ao ver o centro histórico debaixo d’água. É uma paisagem distópica bastante extrema, provavelmente como ver o bairro de West End, em Londres, submerso. Em Bangkok, durante as cheias de 2011, não era o centro da cidade, e sim os arredores, mas eram praticamente ruas urbanas. Quando fui para Srinagar, na Caxemira, o centro da cidade tinha sido bastante atingido, mas não era uma grande capital, com grandes e belas casas antigas como aqui. Ver um centro histórico como este debaixo d’água é algo extraordinário. 

Também fui ao Gasômetro e às Ilhas. Saímos do Gasômetro, de barco, para chegar na região das Ilhas. Pela forma como trabalho, foi muito difícil ver pessoas dentro de suas casas porque a água estava muito alta. Então apenas navegamos por lá. Depois focamos na Vila dos Papeleiros. Obviamente, foi um contraste. Ver o centro da cidade, que parece bastante rico, uma bela cidade antiga, com prédios incríveis, e depois estar numa área muito pobre… 

As pessoas foram muito receptivas e talvez isso seja uma coisa particularmente brasileira: elas andavam alegremente, conversando, rindo e brincando. Quando eram fotografados, no momento em que a Anna perguntava o que aconteceu, eles começavam a chorar. Uma mulher começou a chorar enquanto eu a fotografava… Entramos nas casas das pessoas pela primeira vez para ver a destruição. Elas não têm seguro – ninguém tem seguro, não é uma cultura. Nos Estados Unidos, geralmente, quanto mais rico, melhor segurado você está. Já estive em situações em que uma casa multimilionária foi inundada e durante dias a família ficou sentada, mexendo em todos os objetos, escrevendo listas para o seguro.  Aqui as pessoas não são as mais pobres, elas têm geladeiras e televisões, carros e pequenos negócios, têm o básico, mas perderam tudo. 

Foto: Anna Ortega

Já são mais de 20 dias de enchente. Você já viu inundações que duraram tanto tempo? 

Já vi em outros lugares por muito mais tempo. As enchentes no Paquistão aconteceram em meados de agosto, eu cheguei lá no final de setembro e a água ainda estava muito alta. Também estive na Nigéria, talvez seis semanas depois das inundações. Em parte tem a ver com a topografia, em parte com a infraestrutura. 

Como você lida com a carga emocional envolvida no teu projeto e com as emoções de testemunhar esse reencontro das pessoas com seus lares destruídos? 

Como eu pessoalmente lido com isso? E por que tenho a capacidade de me levantar dia após dia e me colocar perto dos traumas das pessoas? Essa é uma pergunta que me fazem muito. Existem algumas respostas para essas perguntas. Como lidar com a situação e por que quero fazer isso. 

Conversava com minha esposa, que é uma pessoa muito forte, que faz um trabalho importante em uma área muito diferente. Ela pode ser bastante crítica em relação ao mundo fotográfico, compreensivelmente, porque pode ser tratada com muita condescendência. Eu disse a ela: “Eu recebo essa pergunta o tempo todo. Como você lida com isso emocionalmente?” A resposta dela foi muito simples: “Não é uma resposta complicada. Você apenas é o tipo de pessoa fodida que tem dificuldades para se comunicar com pessoas próximas e importantes para você, família e amigos, mas é muito boa em se conectar com pessoas em sofrimento.”

Mas há uma resposta mais complicada e apenas estou começando a entendê-la. Obviamente existe aquela coisa tradicional do fotógrafo perseguir o drama, mas também acho importante olhar para a questão de por que escolhi esse tipo de trabalho. Eu poderia ter vivido como fotógrafo comercial. Não é tão complicado para mim, e poderia ter escolhido rotas mais convencionais, conservadoras ou comerciais. Mas a minha própria formação… Meus pais eram ambos judeus alemães. Ambos ficaram extremamente traumatizados pelas convulsões do século 20. 

Meu pai, quando era bebê, perdeu o pai biológico – ele morreu lutando pela Alemanha na 1ª Guerra Mundial – e perdeu a mãe no Holocausto, quando tinha uns 22 anos. Minha mãe escapou do nazismo por pouco, aos 16 anos. Ela estava em um barco indo da Inglaterra para a África do Sul, então a guerra foi declarada, o barco fez a volta para retornar à Alemanha, e ela conseguiu descer no meio do caminho, em Vigo, na Espanha. Passou muito tempo por lá lutando para encontrar uma forma, um caminho para se juntar aos seus pais na África do Sul. 

Não era incomum que pessoas tão afetadas pelo Holocausto tentassem isolar a si mesmas e às suas famílias de qualquer emoção, qualquer dificuldade, então cresci em uma família muito estranha e, de certa forma, muito desconectada emocionalmente. Talvez essa seja parte da razão pela qual tenho necessidade de me aproximar do trauma extremo de outras pessoas – se você quiser uma resposta honesta e difícil.

É quase como se fosse um super poder estranho, perverso, levantar dia após dia e trabalhar nessa paisagem de trauma. Posso apresentar minhas fotos, elas são muito boas em mostrar isso, mas não há resposta curta. Acho que estou oferecendo aos meus temas um testemunho profundo, o que já é alguma coisa. Há um tipo de conexão que acontece e é uma coisa muito particular. Não é algo que você possa fazer facilmente como fotógrafo. É algo que tem muito a ver com a minha personalidade. O meio pode ser uma resposta.

Uma vez no local, como você aborda as pessoas e como se comunica com elas? 

Não existe uma regra. Cada país, cada cidade, cada situação é diferente. Obviamente estou limitado aqui, em Porto Alegre, porque não consigo me comunicar, não falo português – mas estou trabalhando com uma jovem fotógrafa e jornalista emergente muito talentosa e brilhante, Anna Ortega. Vemos as pessoas, aproximamo-nos delas, falamos com elas. Algumas disseram que não, mas a maioria está bastante aberta a ser fotografada. Na zona onde estivemos hoje [Vila dos Papeleiros], as pessoas sentem realmente que não foram vistas pela mídia. Eles não viram jornalistas na área.

Anna Ortega e Gideon Mendel

Como é a recepção do seu trabalho? Você é questionado sobre questões éticas, no sentido de fotografar pessoas quando elas estão extremamente vulneráveis, vivendo um cenário devastador e muito pessoal? 

Muitas vezes há debate e algum tipo de crítica sobre o meu trabalho. Na verdade, há muitas discussões sobre obras que mostram pessoas reais no mundo. É uma questão: estou explorando as pessoas? Estou fazendo meu próprio trabalho, fazendo minha própria arte a partir da crise deles? Há muito potencial para ser criticado e há discussões sobre isso, mas penso muito sobre a ética do que faço. Sinto que a experiência de ser fotografado, ter essa experiência, é algo que lhes dá alguma coisa. Eu sinto que elas se conectam. Há algum tipo de encontro e união no final. Por exemplo, eu estava fotografando em Houston, Texas, que, em comparação com aqui, inundou casas muito grandes, de pessoas muito ricas. Fotografei um casal em sua casa e também os filmei entrando em sua casa, encontrando e carregando coisas. Tivemos uma conexão muito legal. Terminamos e, quando voltei para o meu carro, eles tinham deixado um bilhete dizendo: “Esta foi uma semana terrível, mas ser fotografado por você foi uma coisa boa. A única coisa brilhante neste tempo.”

Foto: Anna Ortega

Suas imagens carregam esse paradoxo, que acredito ser um dos poderes da arte: estamos diante de algo terrível, mas o que vemos é uma imagem linda. São bem compostos e esteticamente pensados. 

Sim, as imagens são muito estéticas, e a ideia, o pensamento é querer que as pessoas olhem e olhem de novo. Uma espécie de desafio ao seu senso de estabilidade no mundo. Você olha porque é uma imagem esteticamente muito bonita, visualmente agradável, mas na verdade é algo bastante perturbador. Talvez as pessoas sintam uma sensação de desconforto e desafiem a sua sensação de segurança no mundo.

Qual a sua percepção sobre a enchente e os problemas em Porto Alegre? Você leu alguma coisa sobre as possíveis causas e sobre a responsabilização do poder público?

Devo dizer que o meu nível de ignorância sobre as circunstâncias, a história e a extensão da enchente é elevado. Eu adoraria saber mais, porque realmente sei muito pouco. Em geral, quando fotografo inundações e incêndios, há muita raiva. E muitas vezes há focos muito particulares. Na Nigéria, houve a barragem aberta nos Camarões, que provocou uma enorme inundação; em Houston, houve chuvas, mas também a decisão de abrir a barragem, que inundou toda uma área. No Paquistão, havia uma enorme quantidade de água atravessando o país e depois foram tomadas decisões sobre para onde ela seria desviada. Nas cheias de 2010 houve um parlamentar rico, que conseguiu ter suas terras salvas, e centenas de aldeias foram inundadas. O que quero dizer é que inundações acontecem e nunca são neutras. Há sempre problemas e, por um lado, há o efeito das mudanças climáticas, mas também é complexo porque as inundações não são novidade. As inundações vêm acontecendo desde o começo da civilização humana e estão presentes também desde o início da escrita. Todos os sistemas mitológicos mais antigos contam a história do Dilúvio. Acho que o dilúvio, simbólica e mitologicamente, é essa coisa avassaladora que vem e destrói sua vida. Essa coisa avassaladora sobre a qual você não tem controle. Então é algo poderoso. Está nos Puranas hindus, que contém a história de um grande dilúvio; e também na história de Gilgamesh, da antiga Babilônia – é a história mais antiga registrada e há um dilúvio nela.. É sempre esse debate ridículo: é uma questão climática? É claro que o clima é um fator importante, mas também há sempre questões locais. Muitas vezes é um conjunto complexo de razões que causaram a enchente. Mas o que li é que foi certificado que o nível de chuva estava definitivamente fora do normal. Também li que houve uma grande inundação aqui há 70 anos.

Suas primeiras fotos de enchentes são de 2007. Onde foi e como você chegou a esse assunto? Você define seu trabalho como uma mistura de fotojornalismo, arte e ativismo. Poderia falar sobre isso? 

Se você é um fotógrafo sensato, você faz um projeto – um livro, uma exposição –, termina e passa para um próximo. Mas eu tendo a persistir em um assunto. Trabalho com questões de HIV há muito tempo, desde os anos 90, e ainda atuo em questões relacionadas a isso. Costumo me demorar nos assuntos por muito tempo. Ainda não terminei meu livro sobre mudanças climáticas, meu livro sobre enchentes e incêndios florestais, o que já deveria ter acontecido há muito tempo e talvez seja porque sou um pouco perfeccionista. Sempre quero fazer coisas e trabalhos cada vez melhores. 

Em 2007 eu tinha filhos pequenos – agora eles têm 22 e 25 anos, dois meninos – e, naquela época, fiz um exercício mental de tentar imaginar como o mundo seria quando eles tivessem a minha idade. Isso me fez pensar sobre as mudanças climáticas e sobre o que poderemos viver em 2040 e 2050. Então, comecei a pensar em trabalhar com esse assunto – e isso foi antes do Instagram e desse tipo de coisa, redes sociais, mas eu pesquisei como as mudanças climáticas estavam sendo visualizadas, as imagens no Flickr e das agências de fotografia. Olhei muitas fotos e fiquei impressionado com o fato de que a maioria das imagens que apareciam eram de ursos polares e de geleiras e alguma coisa de floresta tropical. Tudo parecia muito distante e estetizado, meio exótico. Não conseguia encontrar nada sobre as pessoas. Também havia muitas fotos de evidências: a água estava aqui e agora está aqui. Era assim e agora está assado. Esse tipo de coisa.

Realmente senti falta de pessoas reais… Queria encontrar uma maneira de fazer um trabalho que fosse visceral, através do qual você realmente pudesse sentir as mudanças climáticas, e o processo acabou sendo bastante instintivo. Não sou de fazer planos iniciais, estava brincando com a ideia, e fui até essas enchentes no norte da Inglaterra, em Yorkshire. Ao mesmo tempo, estava experimentando o médio formato, usando uma câmera Rolleiflex, fazendo retratos. Levei a câmera comigo e então deu um estalo na minha cabeça. Estive nas enchentes, conheci algumas pessoas cujas casas estavam debaixo d’água e tentei fazer as fotos. Quero dizer, de certa forma era algo meio contrafactual, não era mídia que as pessoas esperariam que alguém fizesse. Não era o que você deveria fotografar em uma enchente. Não era o tipo de coisa que está na lista de coisas que os fotógrafos fazem – retratos em situação de enchente! Fiz essas enchentes e, no final daquele ano, estava trabalhando na Índia, e houve grandes inundações em Bihar. Fui até essas inundações também.

Desde que você iniciou seu projeto Flood / Fire, em 2007, você tem a sensação de que os desastres estão acontecendo com mais frequência? Ou de forma mais extrema? 

Neste período, ocorreram muitas grandes inundações em todo o mundo. Parece que há cada vez mais coisas acontecendo, sim. Fotografei as inundações no Paquistão em 2010, que foram imensas. Voltei em 2022 e elas foram ainda maiores e piores. Lugares que tinham acabado de ser reconstruídos, como uma escola destruída em 2010, desapareceram novamente. Na Carolina do Sul, as pessoas se acostumaram a terem inundações a cada dois anos. Parece que o nível de atividade das mudanças climáticas, pelo menos o que observo mais de perto – incêndios florestais e inundações –, estão se tornando cada vez mais extremos. Está piorando a cada ano e também ocorrendo com mais frequência, e é difícil porque essas coisas não são novas. Há muito tempo que ocorrem incêndios e inundações terríveis. 

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