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“LaVaca”: Clarissa Ferreira repensa a música gaúcha a partir de perspectiva feminista

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“LaVaca”: Clarissa Ferreira repensa a música gaúcha a partir de perspectiva feminista Foto: Vitória Proença/Divulgação

O primeiro álbum autoral da compositora, violinista e pesquisadora Clarissa Ferreira reflete sobre a natureza enquanto questiona aspectos machistas da cultura gaúcha a partir de uma perspectiva feminista e contemporânea. O disco LaVaca terá show de lançamento nos dias 4 e 5 de abril, às 19h, no Teatro Oficina Olga Reverbel

“Nessa cultura, as mulheres ficam relegadas ao papel de musa, de uma forma coisificada, admirada – a primeira prenda, a flor, nunca a vaca. As vacas dão sustento a toda essa cultura que se baseia através do universo agropastoril, da pecuária como forma de subsistência”, conta Clarissa sobre o conceito do disco, que estará disponível nas plataformas digitais a partir da meia-noite de sexta-feira (5/4).

Foto: Vitória Proença

Viabilizado por financiamento coletivo, LaVaca é conectado à pesquisa que deu origem ao livro Gauchismo Líquido: Reflexões Contemporâneas sobre a Cultura do Rio Grande do Sul, publicado pela Editora Coragem, em 2022. No disco, a cantora une composições e estudos que repensam o regionalismo gaúcho nos espaços sociais. 

Com 10 faixas, o álbum aborda a degradação do pampa e crítica o machismo enraizado na sociedade gaúcha e na música regional do estado. “Por mais que tenhamos muita luta, ainda vivemos em um universo muito machista culturalmente, e a questão musical, o patriarcado musical, também existe, como a própria construção desse gauchismo, que ficou para sempre na imagem desse gaúcho, homem descendente europeu”, reflete Clarissa – leia a entrevista completa a seguir.

Misturando ritmos brasileiros, argentinos e uruguaios, LaVaca usa o candombe, a milonga, o samba e a chacarera em sonoridades formadas por instrumentos acústicos e arranjos de violões, além de quarteto de cordas – com violinos, viola e violoncelo –, sopapo, sitar indiano, acordeom, beats, baixo elétrico e percussão.

Foto: Vitória Proença

O disco conta com participações especiais de artistas como Vitor Ramil, a cantautora uruguaia Ana Prada, a paulista Rhaissa Bittar, a gaúcha radicada no Rio de Janeiro Nina Wirtti e Loma Pereira. Participam também Bel Medula, Emily Borghetti, Gabriel Romano, Marília Kosby, Nina Fola, Renato Müller.

“É uma escolha bem consciente e também muito de coração, porque as pessoas que eu convidei para o álbum são referências para mim. Elas atuam dentro do regionalismo ou conversam com ele da forma que eu gosto também de pensar”, comenta a compositora.

O repertório inclui composições de Clarissa e poemas e textos musicados de Angélica Freitas, Maria Gabriela Saldanha e Mario Quintana e Su Paz. A canção que abre o disco, A Vaca, traz um poema de Quintana musicado pela compositora, que pondera sobre os versos que as vacas entoariam se cantassem, tudo isso embalado em sonoridades como milonga, samba e bossa nova.

Foto: Vitória Proença

Clarissa utiliza a ironia e o humor para questionar o lugar das mulheres no cotidiano do tradicionalismo gaúcho. Em uma milonga, na faixa Churrascos – poema de Angélica Freitas –, ela rebate: As mulheres às alfaces, as alfaces às mulheres / Que alguém se rebele e diga pela imediata mudança de hábito / Assar uma carne no forno não seria a solução / Que suem as lindas à frente da churrasqueira / E que piquem eles as folhas verdes. 

Na faixa Tiranas, em texto de Maria Gabriela Saldanha, o tema é a demonização das mulheres e a força feminina: Precisamos de todas as mulheres / Até das horríveis, das megeras, das banidas / Do que elas vieram nos contar / Elas existem porque nosso processo de demonização é fácil, é milenar. 

A ameaça ao pampa é assunto em Flor Extinta, que repercute a descoberta de uma flor, mas que já estava extinta devido à degradação do pampa. Resta só 36% da vegetação nativa / Culpa dos eucaliptos, das áreas de pastagem / E de quem só no canto pela terra tem amor / A pampa é pobre e tem data pra acabar. 

O bioma também é tema de Pampa, parceria com Vitor Ramil – A pampa vai virar agreste? / Cinza o azul celeste? / Chumbo no delta do Jacuí? –, em que abordam a ameaça da mineração aos rios do estado e os danos causados pelos agrotóxicos.

O disco foi gravado e mixado no estúdio Pedra Redonda por Wagner Lagemann, e no Estúdio Mochila por Lucas Ramos, entre 2021 e 2023. O trabalho teve produção da própria Clarissa Ferreira, ao lado de Lucas Ramos e Fabricio Gambogi, e contou com masterização de Guilherme Ceron.

LaVaca chega também em formato de álbum visual, acompanhado de livro encarte composto por textos, letras, cifras e texto de apresentação da filósofa e escritora Márcia Tiburi.

Na entrevista a seguir, Clarissa Ferreira conta detalhes sobre o desenvolvimento do trabalho, os temas emergentes e as participações especiais que compõem o disco. 

Como foi o processo de criação de LaVaca e como ele dialoga com a pesquisa e o livro Gauchismo Líquido?

Eu atuei bastante tempo na música regional gaúcha, tanto nativista quanto tradicionalista, e nesse período comecei a pesquisar, no ambiente acadêmico, na área da etnomusicologia, a música e cultura gaúcha e escrever sobre isso. A partir dessas reflexões, comecei a pensar sobre a questão da autoria feminina na música regional. 

Isso me inspirou, me levou a compor e pensar em criar essas narrativas da música regional, relacionando com a contemporaneidade, com questões que perpassam o cotidiano, trazendo reflexões que eu já escrevia em texto. Então, comecei a levar para a música, para a canção. Digo que as minhas músicas têm uma experiência de música com pesquisa junto, porque têm uma mensagem, às vezes até cito algumas, como na faixa Flor Extinta, em que falo sobre uma pesquisa que descobriu uma nova flor, mas que já estava extinta porque o pampa está em extinção. 

Desde 2016 venho compondo e em 2018 comecei a lançar alguns singles, mas foi em 2021 que comecei a gravar esse álbum e a pensar nesse conceito como proposta estética e sonora para a música regional gaúcha.

No álbum, você traz temas como a degradação do pampa, reflete sobre a natureza e cultura gaúcha, e ainda faz uma crítica ao machismo. De que forma você aborda esses temas nas canções?

Tem algumas que são mais irônicas, que eu falo de algumas coisas muito cotidianas e normalizadas, como no poema da Angélica Freitas que eu musiquei (Churrascos), que fala sobre essas convenções sociais dos homens assarem e as mulheres ficarem com a salada. É um jeito irônico, com humor que ela escreve e que transformei em uma milonga para pensarmos nessas coisas muito enraizadas que acabamos naturalizando. 

Mas tem outras também que vão falar, como em Tiranas, sobre como as mulheres são sempre demonizadas nessa cultura quando priorizam a sua liberdade e expressão. Elas são interpretadas muitas vezes como mulheres malvadas ou prostitutas, sempre de forma pejorativa. Isso também é um pouco o conceito do álbum: a ideia de que as mulheres são consideradas vacas de uma forma pejorativa. 

Até falo na abertura do livro: normalmente, nessa cultura, as mulheres ficam relegadas ao papel de musa, de uma forma coisificada, admirada – a primeira prenda, a flor, nunca a vaca. As vacas dão sustento a toda essa cultura que se baseia através do universo agropastoril, da pecuária como forma de subsistência. Tem muita relação com a política sexual da carne, com a forma como o patriarcado construiu essas fronteiras e tenta dominar as pessoas por gênero, cor, sempre lucrando com isso. Esse é bem o mote do disco.

Você costuma trazer uma mistura de ritmos brasileiros, argentinos e uruguaios nas suas músicas. Como você usou essas sonoridades na criação das faixas de LaVaca

Tem uma parte que foi de forma bem natural, porque são ritmos que eu estudo e gosto de tocar, da cultura argentina, uruguaia, e alguns que foram se aculturando aqui no Rio Grande do Sul. E quando escolhemos o conceito artístico, discutimos bastante – eu, Lucas Ramos e o Fabricio Gambogi – qual caminho poderíamos escolher. Focamos muito na questão de mostrar esses ritmos regionais, e não ir para uma forma musical padronizante, diferente do que faz a música pop hoje, apesar de termos também uma questão que hibridiza esses ritmos sulinos com outros mais brasileiros, como samba e bossa nova.

A primeira música do disco começa com samba e depois vai para uma milonga com uso de beats eletrônicos. Acho que isso demonstra bem as nossas vivências e influências musicais, sempre trazendo esse olhar para o supra, que nos diferencia e que é nossa proposta. 

Em LaVaca você traz poemas musicados de escritores como Angélica Freitas e Mario Quintana, inclusive na faixa que abre o álbum. Pode me contar sobre essas escolhas e como esses poemas se conectam com as outras faixas?

Desde que comecei a compor, estudo como a canção se forma. Um dos processos que achei muito interessante foi musicar textos e poesias. Eu já estava nessa temática das vacas, muito influenciada pelo livro Mugido, da Marília Kosby, e fiquei pensando nessas fêmeas e na pampa. Um dia entrei num sebo e encontrei um livro do Mario Quintana com esse poema que fala das vacas, sobre o que as vacas cantariam se elas cantassem. Isso me tocou, porque eu estava nessa temática, mas também porque fiquei pensando na forma poética que ele escreveu e ali eu já vi uma sonoridade, uma rítmica. Acho ele muito genial, um poeta incrível, que traz leveza e simplicidade nesse poema. 

Ele descreve essa vaca caminhando na pampa e, para mim, veio muito uma imagem de um desfile, uma coisa meio Garota de Ipanema até, acho que por isso veio essa coisa semiótica da bossa nova, e depois volta para uma milonga para falar sobre, de fato, o que ela cantaria. 

Foto: Vitória Proença

Tem também um texto que a Maria Gabriela Saldanha, escritora do Rio de Janeiro, postou nas suas redes sociais sobre essa demonização das mulheres. Eu musiquei o texto e acabou sendo a letra de Tiranas. Quando li, já vi que tinha muito a ver com a pesquisa que tenho feito, com essa reflexão sobre os lugares em que colocam as mulheres dentro da cultura. Pensei “bom, eu acho que essa música fecha todas com a mensagem que estou querendo passar”. 

Tem outro, da Su Paz, cantora da música regional daqui e que atuou na mesma época que eu em festivais. Foi uma das primeiras composições que fizemos. Quando ela me enviou essa letra – que também foi inspirada num poema intitulado Eis o Homem –, ela tentava se colocar na visão do homem nessa cultura, fazendo isso de uma forma antagônica. Então, a faixa Flor de Pedra, que foi uma das primeiras músicas que fiz que lá em 2016, 2017, fala sobre essa força feminina e exalta a resistência das mulheres. Essa música mostra tudo que conseguimos fazer e lutamos por fazer, nesse mundo ainda machista. Inclusive, essa canção teve participação da cantora Loma, que ano passado completou 50 anos de carreira, e é uma grande representante da cultura afro-gaúcha.

Gostaria que você comentasse como rolou o convite para as participações especiais do disco.

Tivemos a oportunidade de gravar um trabalho com esse conceito e buscamos pensar nas pessoas que seriam importantes e conversassem com essa temática, porque estamos propondo essa questão estética e musical contemporânea e também porque seria muito bom estar de mãos dadas com essas pessoas que já estão fazendo isso. É uma escolha bem consciente e também muito de coração, porque são referências para mim, como o Vitor Ramil, a Loma, que abriu muitos espaços para estarmos ocupando hoje, compondo e tocando. 

Vitor Ramil e Clarissa. Foto: Felipe Yurgel/Divulgação

A Ana Prado, cantautora uruguaia, foi a primeira pessoa que vi fazer uma milonga feminista, com essa temática, e isso foi muito paradigmático para mim. Assim como o Vitor Ramil foi também, a estética que ele traz para milonga contemporânea, de sair dessas amarras que às vezes se criam para manter uma tradição estagnada. Ele rompe com isso e também filtra muito bem elementos dessa cultura. São pessoas que atuam dentro do regionalismo ou conversam com ele da forma que eu gosto também de pensar. 

Participou também a Nina Wirtti, cantora daqui do Rio Grande do Sul que está morando no Rio de Janeiro. Sou fã da voz e expressividade dela. No disco, ela gravou Abuelita. Tivemos participações de alguns instrumentistas também, como Gabriel Romano, Renato Müller e o nosso quarteto de cordas, chamado Sucinta Orquestra. Tivemos uma cuerda de candombe, de tambores, da Comparsa Tambor Tambora, que é daqui de Porto Alegre e faz parte também de Flor Extinta, trazendo um pouco da cultura afro-uruguaia para a sonoridade do disco. 

Pode me contar sobre como é tratar do machismo no seu trabalho, principalmente no contexto do sul do Brasil, em que ele ainda é bem enraizado?

Por mais que tenhamos muita luta, ainda vivemos em um universo muito machista culturalmente, e a questão musical, o patriarcado musical, existe também. Nós percebemos que as mulheres não foram incentivadas para atuar na parte da composição, para tocar em espaço público – somente em espaços privados, durante o século passado, como a própria construção desse gauchismo, que ficou para sempre na imagem desse gaúcho, desse homem descendente europeu. Na minha pesquisa eu vou investigar a construção desse ideal de gauchismo como um movimento ideológico com vários poderes que foram também construindo as coisas culturalmente da forma que conhecemos hoje. 

Nesse espaço, por ser um espaço patriarcal, as mulheres ficaram em segundo plano, tanto que a grande maioria das narrativas que tínhamos sobre as mulheres eram compostas por homens cantando no eu lírico feminino. Uma das primeiras questões que eu trouxe nesse tema, ainda no blog Gauchismo Líquido, antes dele virar livro, foi a questão do Festival da Barranca, festival de composição onde as mulheres não podem participar. Isso também foi uma questão quando levantei essa pauta nos textos, das mulheres também começarem a pensar sobre o seu papel dentro dessa cultura e o seu papel criativo. Muitas vezes, as mulheres que tinham ou que ainda têm algum papel ficam mais no espaço da cantora e poucas vezes ocupam o espaço de instrumentistas. 

E se começarmos a trazer as nossas narrativas e as nossas experiências? Acho que seria muito transformador para a música gaúcha de fato. Apesar de estarmos em um processo bem inicial sobre esse debate, ainda temos muita resistência, também das mulheres que foram criadas nessa cultura, em repensar essas estruturas, em problematizar esse ideal de prenda – tudo isso que está posto ali como um lugar em que, se elas mudarem um pouco o script, já não serão aceitas em festivais, por exemplo. Assim como eu tive que escolher outro caminho para seguir o meu trabalho, sinto que a minha temática não cabe nesses espaços do tradicionalismo e do nativismo. 

Foto: Vitória Proença

– 

Serviço

Clarissa Ferreira apresenta LaVaca
4 e 5 de abril, quinta e sexta-feira, às 19h
No Teatro Oficina Olga Reverbel (Multipalco – Theatro São Pedro)
Participam Loma Pereira, Nina Fola, Emily Borghetti, Renato Müller, Gabriel Romano e Guilherme Ceron
Ingressos à venda no site do teatro, com valores entre R$ 20 e R$ 40

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