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“Soldado Estrangeiro” mostra a guerra sem romantismo

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“Soldado Estrangeiro” mostra a guerra sem romantismo Foto: Coevos Filmes/Divulgação


Três jovens brasileiros vivem diferentes estágios de uma mesma escolha: fazer parte de um grande exército de uma nação estrangeira. O documentário Soldado Estrangeiro, de José Joffily e Pedro Rossi, acompanha a vida e desvenda as motivações individuais desses três soldados. O longa participou do Festival É Tudo Verdade e do Docs MX – Festival Internacional de Documentário da Cidade do México, em 2019, e estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (3/12)

O primeiro personagem apresentado no filme é o aspirante Bruno Silva, carioca da periferia do Rio de Janeiro. Ele deixa a família para trás, junta todas as suas economias e parte para França, sem falar o idioma local, com a intenção de realizar o sonho de servir na Legião Estrangeira. O documentário registra o rigoroso processo de seleção da unidade militar de elite, mostrando na tela em imagens raras os bastidores, as instalações e a rotina dessa mítica corporação – muito romantizada no cinema, mas pouco conhecida na realidade. 

Já o combatente Mário Wasser é um jovem da classe média paulista. Serve ao exército israelense, em uma base militar na Cisjordânia. O mais jovem dos três parece ser também o mais bem adaptado e confortável na função, fluente em hebraico e usufruindo dos benefícios que o exército oferece, como casa e estudo. Para Wasser, as constantes abordagens a palestinos nos territórios que patrulha ao lado dos colegas de tropa são encaradas como rotina de trabalho, enquanto o conflito na região parece ser visto por ele como um dos games de guerra que o brasileiro joga quando está de folga.

Foto: Coevos Filmes/Divulgação

O terceiro brasileiro é o veterano Felipe Nascimento, que vive atualmente em Nova York. Ele saiu do Brasil para servir como fuzileiro naval nos Estados Unidos. O ex-combatente, que atuou na Guerra do Afeganistão, não esconde, no entanto, as marcas deixadas pela guerra: tentando alterar judicialmente o status de sua baixa na marinha estadunidense, na qual considera injusta a anotação de má conduta, Nascimento sofre com a inadaptação à vida civil no estrangeiro.

Foto: Coevos Filmes/Divulgação

“Em Soldado Estrangeiro uma certeza nos orientava: fazer um filme antibélico. Dúvidas de como fazer, onde ir e com quem conduzir a narrativa eram às vezes desconcertantes. Mas estávamos convictos do norte a seguir. Nossas teorias eram confrontadas a todo momento por Bruno, Mario e Felipe. Fosse para sair da Baixada Fluminense e melhorar de vida na Legião Estrangeira, defender ideias genéricas na Cisjordânia ou se afirmar como um veterano nos Estados Unidos, as escolhas dos três conduziam o filme para uma guerra estranha a nós, seus conterrâneos”, explicam os diretores José Joffily e Pedro Rossi, que retomam a parceria depois de Caminho de Volta (2015), longa que também retrata brasileiros vivendo no exterior.   

As histórias do aspirante, do combatente e do veterano, contadas de forma independente, são pontuadas com citações do livro Johnny Vai à Guerra, do escritor e roteirista norte-americano Dalton Trumbo – romance de 1939 que lança luz sobre os ideais antiguerra e humanistas e que chegou ao cinema em 1971, transformando-se em um clássico do antibelicismo escrito e dirigido por Trumbo. A edição de Soldado Estrangeiro é da premiada montadora Jordana Berg, que trabalhou com o mestre Eduardo Coutinho em documentários antológicos como Santo Forte (1999), Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007), além de outros importantes títulos do gênero como Uma Noite em 67 (2010) e Democracia em Vertigem (2019).

O diretor José Joffily já desenvolveu diversos projetos, entre ficções e documentários, como os filmes Caminho de Volta (doc., 2015), Olhos Azuis (fic., 2010), Vocação do Poder (doc. 2005), O Chamado de Deus (doc., 2000) e Quem Matou Pixote? (fic., 1996). Vencedor do Kikito de melhor filme por Quem Matou Pixote? e do Candango de direção por 2 Perdidos numa Noite Suja (2002), Joffily falou em entrevista exclusiva sobre Soldado Estrangeiro, comentando a respeito dos três personagens do filme e sobre o processo de produção e rodagem – além de ressaltar o caráter antibélico do seu longa: “A guerra só é romântica de longe. Na medida do possível, o filme mostra isso, a guerra é a brutalidade dos fatos, da rotina”.

Foto: Coevos Filmes/Divulgação

Como vocês chegaram aos três personagens do filme? 

De início queríamos que o filme acompanhasse um personagem ao longo dos anos. Acompanhar desde o sonho de servir a um exército estrangeiro ao desfecho desse desejo, ao final da carreira. Claro que na prática seria improvável se dedicar a essa trajetória. Assim, decidimos acompanhar três personagens. Seriam 3 em 1. O primeiro seria um brasileiro com o desejo de ser um soldado estrangeiro, o segundo, alguém realizando esse sonho. O terceiro, um brasileiro que tivesse cumprido as duas etapas anteriores. Ao final, essa decisão ia se mostrando cada vez mais rica, seriam três brasileiros de origem bem diversas, em países diferentes e por motivos variados. Mas algo teriam em comum, e é isso que o filme tentou identificar. 

Chama a atenção as cenas filmadas dentro das dependências da Legião Estrangeira e dos soldados do exército israelense em ação. Como foi a negociação para conseguir realizar essas filmagens? 

Mantivemos correspondência durante um ano com a Legião Estrangeira e com o exército israelense. As negociações preliminares foram longas e continuaram durante as filmagens. Os espaços foram conquistados a todo momento, a cada dia. No exército israelense, fomos acompanhados a cada passo por um soldado, que delimitava espaços e temas. Como sempre, talvez as melhores cenas tenham sido as filmadas nos intervalos. Mas é evidente que em documentários só filmamos o que nos deixam filmar. 

Para além de questões materiais específicas, como melhoria de salário e status social, o que mais leva jovens brasileiros como os personagens do filme a buscarem servir em exércitos no exterior? 

Acho que existe além disso tudo o desejo de se aventurar, de mudar de nome, de amigos, de família, de objetivos, de idioma, viver a experiência de ser outra pessoa. Claro que a guerra só é romântica de longe. Na medida do possível, o filme mostra isso, a guerra é a brutalidade dos fatos, da rotina.  

Foto: Coevos Filmes/Divulgação

Dos três personagens do filme, Mário Wasser é a figura mais esquiva em cena, enquanto Felipe Nascimento é o que mais se expõe. Como foi construída a relação de confiança com o trio de protagonistas? 

A confiança é um jogo de avançar e recuar. O Mario era o mais moço deles e também o mais contido. Ao longo das filmagens, um militar nos acompanhava e monitorava o que era conversado e filmado. Mario, recém incorporado à tropa, foi indicação deles. Aqui no Rio de Janeiro convocamos os possíveis interessados a gravarem conosco suas motivações de partir. A partir dessas entrevistas, escolhemos o Bruno. Morador de Mesquita, município do Rio, na primeira conversa Bruno já revelou muita determinação e um desejo imenso de mudar de vida e ter melhores condições financeiras. O Felipe é filho de uma amiga de longa data com quem tínhamos trabalhado em Nova York na produção de outro filme. Acompanhei sua carreira e me lembrei dele quando pensamos em fechar o filme com um veterano.

No documentário Caminho de Volta, vocês já abordavam a vida de brasileiros no exterior. Quais seriam os pontos comuns que você identifica entre aquele filme e Soldado Estrangeiro? 

Esses personagens que saem de casa e se jogam no mundo sempre me interessaram. Independentemente dos motivos para ir ou das razões para voltar, sempre achei atraente esse inconformismo com a permanência. 

Soldado Estrangeiro evita a apologia ao militarismo e à beligerância, mas a violência social e institucional perpassa todo o filme. Como você avalia a presença da violência na sociedade brasileira atual e a naturalização e institucionalização das milícias e outras formações paramilitares? 

Pretendíamos fazer um filme antibélico. Claro que a violência aqui é em grande parte por conta da desigualdade existente em nosso país. A milícia é fruto dessa desigualdade e da crença de parte da sociedade de que essa seria a solução. Quando as autoridades de um país são lenientes com essa milícia, estão autorizando a violência.

Quais são seus próximos projetos? 

Alguém disse que ser cineasta é ter projetos. São muitos, quanto mais o tempo passa, mais eles se acumulam. Com isso, as frustrações são contínuas e o tempo vai encurtando. No momento estamos preparando um filme que conta a história do diplomata José Mauricio Bustani, um brasileiro que se confrontou com os EUA quando diretor de uma organização multilateral.  

Foto: Coevos Filmes/Divulgação

Soldado Estrangeiro: * * *

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Confira o trailer de Soldado Estrangeiro:

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