Coletânea mostra a força da nova poesia mineira
Terra de grandes nomes da poesia brasileira como Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, Minas Gerais mostra que sua poesia segue vigorosa. Publicada neste ano pela editora Quixote+Do, a coletânea Entrelinhas, Entremontes: Versos Contemporâneos Mineiros reúne poemas de 61 poetas do estado, incluindo destaques nacionais como Ana Martins Marques. A obra foi organizada a seis mãos pelos poetas e professores Vera Casa Nova e Kaio Carmona e pelo poeta Marcelo Dolabela – falecido em janeiro de 2020 e homenageado em edição especial da revista Germina.
O livro físico está em fase de pré-venda (R$ 40) e já ganhou versões em outros formatos: a obra pode ser baixada no site da publicação e teve seus poemas transformados em audiolivro no Spotify. Além disso, em agosto de 2019, poetas e bailarinos levaram textos da coletânea ao palco do Teatro Marília, em Belo Horizonte – trechos da ocupação do espaço cênico estão disponíveis em vídeo no canal online da obra, viabilizada com patrocínio da UniBH e recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte,
“Costumamos brincar aqui em Minas que os mineiros tendem a preferir homenagear os mortos. Quando vem uma chance para homenagearmos os autores contemporâneos – nossos colegas ‘de praça’, por assim dizer, ou ‘da livraria’ -, é uma grande oportunidade para brindarmos a vida dos poetas, da poesia, o hoje que vivemos”, conta Luciana Tanure, editora da Quixote+Do – que aguarda a reabertura das livrarias do país para distribuir os exemplares da obra e lançá-la na Livraria Quixote, na capital mineira.
Kaio Carmona, doutor em Estudos Literários (UFMG) e pós-doutorando em Poéticas da Modernidade (UFMG), é coorganizador de Entrelinhas, Entremontes, coletânea que também integra como poeta. O autor de Um Lírico dos Tempos (Scortecci, 2006), Compêndios de Amor (Scriptum, 2013) e Para Quando (Scriptum, 2017) conversou com a gente sobre a publicação. Confira:
O projeto do livro levou três anos para ser concluído. Quais foram os principais desafios de todo o processo até a publicação?
A ideia partiu da Vera Casa Nova, que idealizou uma coletânea da nova poesia que se produzia em Minas Gerais. Depois, Vera convidou Marcelo Dolabela e a mim para compormos a organização e contribuirmos com a realização da empreitada. De lá para cá, os desafios foram muitos: critério e seleção de poemas, contato com os poetas, busca de editoras, viabilização financeira da obra, organização do material, entre tantas outras tarefas que exige uma publicação com essa qualidade e representatividade. Em 2018, finalmente conseguimos uma parceria com a editora Quixote+Do, entramos no edital municipal de incentivo à cultura (FMC), conseguimos ser aprovados e a realização do projeto foi possível. Ao todo são 61 poetas compilados, e estamos cientes de que existem muitos outros bons poetas mineiros, mas por força do calendário concluímos em 2019 a seleção dos autores e dos poemas. O que se vê em Entrelinhas, Entremontes é a capacidade da poesia, especialmente em Minas Gerais, de resistir e persistir com qualidade e diversidade diante de um cenário tão adverso à arte e à cultura.
Entrelinhas, Entremontes teve desdobramentos para além do livro: no palco, em vídeo e em áudio. Como foi explorar outras linguagens e formatos? Em relação ao audiolivro, de que forma a produção poética pode se beneficiar desse tipo de publicação?
Acreditamos que a poesia deve chegar a todos, por diversos formatos e linguagens. Para isso, contamos principalmente com o trabalho de Vera Casa Nova e de Luciana Tanure, editora da Quixote+Do, que conseguiram vincular o projeto a outras propostas artísticas e levar a poesia de Minas Gerais para o palco do Teatro Marília, espaço público de Belo Horizonte. A apresentação foi bastante prestigiada, com um público interativo com as diversas manifestações artísticas: danças no ar, com a Cia Suspensa, vídeos, bailarinos e atores interpretando os poemas; pinturas, performances, slam e leituras. Além disso, criamos para o projeto um site, redes sociais e um audiolivro, na plataforma Spotify, que permite a audição dos 305 poemas, lidos por mim e pela Vera Casa Nova. A decisão de construir um audiolivro partiu do desejo de levar a poesia a muitas pessoas, além do livro físico, às pessoas que têm dificuldade visual e aos leitores que preferem o caráter acústico e melódico dos textos.
As paisagens mineiras, sejam elas montanhas ou espaços urbanos, se revelam no título e em diversos poemas da coletânea, por vezes aludindo aos recentes desastres ambientais que ocorreram em Brumadinho e Mariana. Como você descreve os olhares que os poetas de Minas Gerais dirigem ao entorno e a esses acontecimentos trágicos?
Refletir sobre a paisagem tem sido uma constante em nossas terras. As montanhas e os espaços urbanos são matéria poética desde o século 18 até hoje; desde Cláudio Manoel da Costa até Carlos Drummond de Andrade e Affonso Ávila. Bem como o processo de exploração, da natureza e das pessoas, que se instaurou aqui desde o período colonial. Esse processo segue firme e perverso no século 21 e frequentemente testemunhamos o resultado de tamanha vileza nas tragédias anunciadas previamente, como a de Mariana e de Brumadinho. A poesia contemporânea de Minas não se furta a esta denúncia e propõe por meio de seus versos alguma conscientização de nossa história e de nosso presente.
Como tem sido a recepção do livro até agora? Quais os planos dos organizadores para a publicação, tendo em vista as dificuldades impostas pela pandemia?
Vivemos um momento inédito e terrível em nossa história, imprevisível há alguns meses. Infelizmente, e não só para a nossa coletânea, a pandemia afetou e continuará afetando outras produções culturais. Não bastasse isso, com todas as mortes e prejuízos causados pela Covid-19, nosso governo federal e a secretaria de cultura parecem, de caso pensado, trabalhar para a precarização e sucateamento das artes, cortando incentivos e projetos, dando as costas à memória e à cultura do país.
Embora todo esse quadro adverso, a crença na poesia como arte transformadora da humanidade resiste e persiste. Por isso, criamos algumas saídas para a divulgação da obra. Estamos desde o início em constante contato com os poetas de Minas Gerais, na esperança e vontade de que tudo saia conforme a vontade do autor. Quando a quarentena começou, nós estávamos já com o lançamento físico da obra agendado, mas tivemos de suspender. Mas, mesmo antes, publicamos semanalmente trechos da obra, biografia dos autores e as leituras dos poemas no Spotify. O livro está em pré-venda na Livraria Quixote, e, assim que toda essa loucura passar – e vai passar -, realizaremos o lançamento físico da obra.
O livro tem uma dedicatória ao poeta Marcelo Dolabela, coorganizador da publicação, falecido em janeiro deste ano. Como foi a parceria de vocês e qual a contribuição de Dolabela para o projeto?
Marcelo Dolabela foi não só grande poeta, mas também importante agitador cultural em Minas Gerais. Idealizou e realizou vários projetos culturais, e em todos eles deixou sua voz reflexiva e irreverente. Seu falecimento precoce foi uma perda enorme para as artes mineiras. Dolabela foi fundamental para a concepção da obra Entrelinhas, Entremontes e partiu dele ideias que levamos até o momento, na produção e divulgação da poesia que se encontra no livro. Por isso e por tudo o que representa para a cultura mineira é que dedicamos o livro a ele. Ao longo da concepção do projeto, tivemos também outra perda precoce e dolorosa com o falecimento de Camilo Lara, poeta que compõe a obra e foi por diversas vezes parceiro de Marcelo Dolabela em seus projetos.
Por fim, como você convidaria os leitores, em meio ao isolamento social, a viajar por Minas Gerais através das páginas e áudios do livro?
A poesia contemporânea brasileira atesta um período de fértil produtividade, com qualidade e diversidade. Muitas boas poetas e muitos bons poetas têm produzido versos que em conjunto edificam a nossa literatura. A poesia de Minas Gerais compõe um dos quadros que é esse grande mosaico da literatura brasileira. No prefácio para a obra, Domicio Proença afirma: “Trata-se de um livro que permite ao leitor, ao lado de desfrutar o prazer do texto, travar contato com a arte poética em processo entre as montanhas de Minas e o espaço do silêncio do texto literário, lugar em que melhor se diz. E, sobretudo, constatar que, nas terras mineiras, a poesia vive”. A poesia mineira resiste, a poesia brasileira persiste!
Confira alguns dos poemas que integram a coletânea:
Reptil, Adriana Versiani
1
Apenas um reptil,
me compadeço da morte das nascentes.
Mesmo sendo frio meu sangue e eu apenas isso,
um reptil,
diante da grandeza extinta do rio,
me compadeço.
Estou sobre a terra e bebo pouco.
O sol racha a lama em losangos imperfeitos.
A vida arde no couro grosso que protege meu corpo.
Sou um reptil
E por isso não choro,
me compadeço.
2
No escuro, guardo os ovos para o próximo período.
Não sinto raiva, ansiedade ou medo.
Apenas um reptil,
fito os olhos do animal secando na areia do deserto.
Neste universo apinhado de estrelas, eu,
apenas um reptil,
me compadeço.
3
Diante da singularidade da natureza,
sou também natureza,
incapaz de pensar a minha natureza.
Trago na boca uma língua pegajosa que guarda o mistério
do último inseto.
O espaço está repleto de fantasmas
e o universo se alimenta de corpos que apodrecem.
Eu,
apenas um reptil,
não lamento o universo,
me compadeço.
Afogamento, Adriane Garcia
Há um desejo
De imersão das águas
Adentrando narinas
Um treinamento
Pelo não desespero de
Afogar-se
Desejo da palavra aquática
Da palavra amniótica
Da palavra silenciosa
Dos peixes
Não um coração batendo
Que os assuste.
Good manners, Alícia Duarte Penna
Em algum far away,
em algum rainy day,
teria havido uma madrinha inglesa
de quem se teria copiado
o sussurro,
a postura cavalheira e dama
(em que se sobressai o pescoço mesmo sob gola alta)
e o uso das mãos em balé,
tanto ao levar a xícara à boca
quanto ao vasculhar o bolso
à procura de tostão ou papel:
tudo aquilo que meu pai Penna
chamaria Duarte
à mesa da copa onde nos destreinava
para a luta.
Tenho quebrado copos, Ana Martins Marques
Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito
Por vesgas nesgas, se vê tristes melodias, Marcelo Dolabela
Por vesgas nesgas, se vê tristes melodias,
a memória é um músculo que nunca descansa,
traça trama no torpe pus das alegrias,
as dores são pesadas em tantas balanças.
Notívago, vago por minhas nostalgias,
o nervo exposto, algas amargam as lembranças,
desgosto feito pela urgência dos dias,
pela necessidade de ter esperança.
Surdos vivos noturnos têm frágeis fragrâncias,
a tristeza grita gris na melancolia,
e a febre é fria fibra na urna das ânsias.
Lento lamento escrito na luz das urgências
sorve a seiva, a selva do caos da consciência,
na cova do tempo: pó, lama e poesia.
Aula de desenho, Maria Esther Maciel
Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.
O hoje é um cão, Mônica de Aquino
O hoje é um cão
com fome
que esconde o osso.
O hoje é a mão
que o cão lambe.
O hoje é o dono do cão.
*
O hoje é um cão
pura língua
e dentes
preso à corrente
do cão-passado
preso ao alarde
do amanhã:
cão-labirinto
às vezes fera
que ladra e morde.
*
O tempo é um cão
de três cabeças
(há dias em que é besta
Cérbero em círculo).
O tempo é a pata
que cava a espera
à procura do osso
que enterra.