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Juçara Marçal abarca sonoridades diaspóricas em “Delta Estácio Blues”

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Juçara Marçal abarca sonoridades diaspóricas em “Delta Estácio Blues” Juçara Marçal. Foto: Pablo Saborido

Cantora e compositora influente na música brasileira das últimas décadas, Juçara Marçal apresenta na próxima quarta-feira (6/4), no Opinião, a partir das 21h, o álbum Delta Estácio Blues (Natura Musical/QTV Selo). A artista sobe ao palco com Alana Alanis (bateria), Marcelo Cabral (baixo) e Kiko Dinucci (guitarra) – leia a entrevista com o músico e produtor do disco, que apresenta Rastilho (2020) na mesma noite.

Aclamado pela Associação Paulista de Críticos de Arte e pelo Prêmio Multishow de Música Brasileira como melhor disco de 2021, Delta Estácio Blues é o segundo trabalho solo de Juçara – o primeiro foi Encarnado (2014). Mesclando melodias e cacofonias em faixas densas, o álbum traz a presença da artista em todos os processos – das bases produzidas a partir de colagens eletrônicas, passando por investigações com instrumentos e vozes, até a coautoria de seis composições.

A faixa-título, com letra de Rodrigo Campos – com quem Juçara gravou Sambas do Absurdo (2017) –, revela uma síntese das sonoridades amalgamadas no álbum. O “microconto”, como define a cantora, narra a história de um encontro no Rio de Janeiro entre Robert Johnson – o “rei do Mississippi Delta Blues” e inspiração para artistas como Bob Dylan e Rolling Stones – e os sambistas Baiaco, Bide e Ismael Silva – vinculados à renovação do samba carioca nos anos 1920 e cofundadores da primeira escola de samba do país, a Deixa Falar, em 1929:

Robert Johnson escreveu/ Vinte e nove canções/ Era um homem medíocre/ Tocando violão/ No Estácio pagão/ Bide, Baiaco e Ismael/ Fez trato com os três malandros/ E desapareceu/ Alguns anos no breu e reapareceu/ Delta Blues Mississippi/ Cultua um novo deus”.

Esse entrecruzamento de linguagens, gêneros, procedimentos – que está na base da ideia do encontro entre Robert Johnson e bambas do Estácio – é metáfora capaz de abarcar tudo o que vínhamos fazendo na criação do álbum”, explica Juçara – leia a entrevista a seguir –, referindo-se ao diálogo de elementos eletrônicos com vertentes musicais de protagonismo negro que incluem, além do samba e do blues, maracatu, funk, jazz e rap.

A faixa Crash, por exemplo, eleita Canção do Ano (2021) pelo Prêmio Multishow de Música Brasileira, traz Juçara rimando versos do rapper paulistano Rodrigo Ogi.

Embora já tivesse interpretado Negro Drama, dos Racionais MCs, no álbum Ser Tão Paulista (2004), do grupo Vésper Vocal, e colaborado em músicas de Criolo (Fio de Prumo), Emicida (Samba do Fim do Mundo), Marcelo D2 (4ª às 20h) e do próprio Ogi (Correspondente de Guerra), Juçara conta que Crash foi a interpretação mais desafiadora de Delta Estácio Blues: “Estudei muito o flow do Ogi, para descobrir um que desse conta do mestre, mas que fosse o meu jeito de contar a história ali contida na canção”.

Outras latitudes se misturam com as sonoridades diaspóricas do Rio e do Mississippi. A primeira faixa, Vi de Relance a Coroa, com letra de Siba Veloso, traz à tona as cirandas da Zona da Mata pernambucana e a entidade afroindígena Reis Malunguinho. Em Corpus Christi, composição de Douglas Germano, nomes de localidades revelam uma viagem ao litoral de São Paulo.

O percurso por diferentes tradições musicais é permeado por samples de instrumentos e sons ordinários diversos, incluindo fragmentos de gritos e portas se abrindo. “A ideia desde o início era partir de bases eletrônicas e, dessas bases, surgiriam as canções. Um processo inverso ao que geralmente é realizado na composição de canções”, descreve Juçara.

As parcerias para as composições de Delta Estácio Blues envolvem, além de Ogi, Germano e Veloso, os artistas Maria Beraldo, Negro Leo, Rodrigo Catatau e Tulipa Ruiz. O álbum traz ainda versões para Oi, Cat, do trio carioca Tantão e os Fitas, e La Femme à Barbe, canção de Brigitte Fontaine e Jacques Higelin – entre 2017 e 2018, Juçara apresentou um show com repertório da compositora francesa.

Juçara Marçal. Foto: Pablo Saborido

Nascida em Duque de Caxias (RJ), aos 10 anos Juçara Marçal mudou-se com a família para o estado de São Paulo. Inicialmente, viveu em São Caetano, na região do ABC, e São Sebastião, no litoral. Anos mais tarde, na região metropolitana da capital, começou o curso de Matemática, mas acabou concluindo graduações em Jornalismo e Letras e mestrado em Letras – todos as formações pela USP.

Hoje com 60 anos, Juçara conciliou atuações como cantora e professora até 2014. A trajetória artística começou em corais amadores e no coro cênico da Companhia Coral, em São Paulo. No começo dos anos 1990, ingressou no quinteto Vésper Vocal, voltado à interpretação de música brasileira.

Em 1998, passou a integrar o grupo A Barca, dedicado à pesquisa da cultura popular brasileira a partir das ideias de Mario de Andrade. Em 2007, Juçara gravou Padê com Kiko Dinucci e formou o Metá Metá – que reúne Juçara, Dinucci e o saxofonista Thiago França – relembre a entrevista com o músico.

Em meio às gravações de trabalhos do Metá – três discos, um EP e a trilha sonora do espetáculo Gira, do Grupo Corpo – e diversas participações, em 2015 lançou com o músico Cadu Tenório o disco Anganga, que reúne congados mineiros, composições de Tenório e cantos de trabalho em idioma banto recolhidos pelo filólogo Aires da Mata Machado Filho em São João da Chapada (MG).

As referências musicais de Juçara Marçal incluem, além da música produzida na África e na diáspora africana, a Vanguarda Paulista, formada entre o final dos anos 1970 e meados dos 80 por artistas como Arrigo Barnabé, Cida Moreira, Grupo Rumo, Itamar Assumpção e Luiz Tatit.

Leia a entrevista com Juçara Marçal.

Como foi a concepção do disco até o lançamento em 2021?

O disco começou a ser concebido em 2017. A ideia desde o início era partir de bases eletrônicas e, dessas bases, surgiriam as canções. Um processo inverso ao que geralmente é realizado na composição de canções. Fomos colecionando essas estruturas no computador, utilizando várias fontes: samples, riffs de baixo, de guitarra, levadas rítmicas, ferramentas do próprio Ableton Live (programa que utilizamos para fazer o disco). A partir de algumas das bases, nós mesmos fomos compondo linhas melódicas. De outras, fomos convidando amigos para criarem. Um longo processo até chegarmos às 11 músicas do Delta Estácio Blues.

Como surgiram as parcerias com os outros artistas que participam de Delta…?

São parcerias que já existiam, em sua maioria. Se não na composição propriamente dita, em trabalhos que fizemos juntos em várias ocasiões. Creio que a parceria com o Catatau foi a que surgiu com o disco. E foi muito especial. Certamente faremos mais coisas juntos porque a afinidade se confirmou totalmente. Catatau foi muito generoso durante o processo de elaboração de Lembranças que Guardei. Muito perspicaz também. O que era para ser uma letra pra canção – que foi o pedido inicial para essa base – tornou-se um arranjo dele próprio para o disco. Um arranjo, diga-se de passagem, espetacular, e que dialoga plenamente com a sonoridade do Delta Estácio Blues.

Juçara Marçal. Foto: Pablo Saborido

Você estabelece alguma conexão mais direta de Delta… com Encarnado, ambos álbuns solos, ou entende mais como um mesmo percurso, envolvendo diferentes formações e produções?

Além de serem discos que têm meu nome em evidência, ambos são buscas de sonoridades que eu não havia experimentado antes. Mas se formos avaliar, todos os trabalhos de que faço parte têm essa marca. No Metá Metá, no Anganga, no Sambas do Absurdo… Sempre há uma busca por outras sonoridades, linguagens, desconstruções, formatos.

A faixa-título fabula uma passagem de Robert Johnson pelo Estácio. Como se chegou à ideia desse encontro e de que forma ele reflete a sonoridade do disco?

A ideia é do Rodrigo Campos, parceiro nesta faixa. Fizemos a base e a passamos para que o Rodrigo inventasse o que viesse à cabeça. E ele criou esse microconto fantástico em forma de canção. Algo surpreendente e muito genial. A certa altura me dei conta de que essa síntese vislumbrada por ele tinha a ver com o disco inteiro. Esse entrecruzamento de linguagens, gêneros, procedimentos – que está na base da ideia do encontro entre Robert Johnson e bambas do Estácio – é metáfora capaz de abarcar tudo o que vínhamos fazendo na criação do álbum.

Além do Mississippi e do Estácio, o álbum também evoca outras latitudes em Vi de Relance a Coroa e Corpus Christi. Poderia nos falar sobre essas faixas?

Vi de Relance a Coroa é composição de Siba Veloso. Ao contrário da maioria das canções do disco, essa não partiu de uma base que fizemos. O Siba me presenteou com essa canção e fizemos o arranjo, para o qual contamos com a ajuda de Cadu Tenório. A levada e as imagens que ela evoca tem a ver com o universo da Zona da Mata pernambucana, inspiração inequívoca de Siba em suas criações.

Corpus Christi é parceria com Douglas Germano. Nós fizemos a melodia, imaginando uma bossa nova esquisita, inusual. Em vez da Zona Sul carioca, que inspirou tantas canções, o nosso foco era Praia Grande, Cubatão, praias pouco cantadas, sem a exuberância das praias do Rio de Janeiro cartão postal. Chamamos o Douglas pra criar esse cenário. E ele, muito conhecedor da região do Litoral Sul de São Paulo, e com sua acuidade característica, foi fundo e fez uma crônica muito precisa e bem-humorada desse movimento dos paulistas em direção à praia nos feriadões, como o de Corpus Christi. 

A faixa Crash, primeiro single de Delta, traz você rimando e foi eleita Canção do Ano pelo Prêmio Multishow de Música Brasileira. Como foi essa experiência e a parceria com Rodrigo Ogi?

Essa música é a mais desafiadora em termos de interpretação. Estudei muito o flow do Ogi, para descobrir um que desse conta do mestre, mas que fosse o meu jeito de contar a história ali contida na canção. Rodrigo Ogi é parceiro de várias paradas. Já participei do disco dele, , cantando o refrão de Correspondente de Guerra. Já participamos de uma mesma faixa do disco do Marcelo D2, Assim Tocam os Meus Tambores, fizemos parte do disco e do show Malagueta, Perus e Bacanaço, do Thiago França.

La Femme à Barbe traz à tona o repertório de Brigitte Fontaine. Poderia nos falar um pouco sobre a tua relação com a artista francesa?

Conheci Brigitte Fontaine num disco dela com o Art Ensemble of Chicago. O Kiko que me apresentou muitos anos atrás, por saber da minha ligação com a língua francesa. Me apaixonei pelo álbum e pelo jeito irreverente dessa compositora, cantora e escritora atuar. Ela tem um jeito de cantar, de compor, de performar, muito diferente de tudo o que se conhece em canção francesa. Quando estava no momento de experimentar sonoridades pra um próximo trabalho, resolvi fazer um show com repertório dela, cantando algumas músicas daquele álbum, mas pesquisando repertório de outros discos. La Femme à Barbe é canção do disco Genre Humain.

Por fim, o álbum também traz as imagens e manobras de uma Ladra e uma Baleia. Gostaria que você comentasse essas duas figuras presentes em Delta….

Eu me divirto interpretando as manobras inteligentíssimas dessas personagens, criadas por compositoras maravilhosas: Ladra, de Tulipa Ruiz, e Baleia, parceria com Maria Beraldo. Não por acaso momentos cheios de malícia e sensualidade no disco e no show.

“Delta Estácio Blues” (Juçara Marçal) e “Rastilho” (Kiko Dinucci)

Onde: Opinião (Rua José do Patrocínio, 834 – Cidade Baixa – Porto Alegre)
Quando: 6 de abril de 2022, às 21h
Abertura da casa: 19h30
Ingressos:
Bilheteria oficial (sem taxa de conveniência – somente em dinheiro):
Loja Planeta Surf Bourbon Wallig (Av. Assis Brasil, 2.611 – Loja 249 – Jardim Lindóia – Porto Alegre)

Demais pontos de venda (sujeito à cobrança de taxa de conveniência – somente em dinheiro):
Loja Verse Centro (Rua dos Andradas, Galeria Chaves, 1.444 – Loja 06 – Centro Histórico, Porto Alegre)

Venda online pelo Sympla

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