Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

O problema com Fleishman

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O problema com Fleishman FX/Divulgação

As séries têm muitas diferenças com o mundo do cinema, ou mesmo da tevê. Elas são vistas em alguma tevê, mas não são tevê. Tevê é novela e Jornal Nacional, e televangelismo.

Uma outra diferença importante é que as séries são, como nenhum outro meio, um espaço de atuação de mulheres que criam, dirigem, atuam, produzem, definem.

Lá atrás, Lena Dunham convenceu os executivos da HBO a produzirem Girls, só pra ela poder narrar todo o sofrimento das brancas jovens e privilegiadas de Nova York e pegar o Adam Driver antes de ele ser o Adam Driver. Dali em diante, as séries se transformaram finalmente no território em que todos podem ver, ouvir, compreender a experiência das mulheres sobre esse planeta narrada por elas, e não necessariamente por homens. Phoebe Waller-Bridge, Michaela Coel, Claire Danes, Quinta Brunson, todas são mulheres que exploram de forma especialmente brilhante esse novo meio, e todos saímos ganhando com isso.

Em uma das séries mais interessantes destes tempos, o modelo se repete. A criadora é Taffy Brodesser-Akner, e desenvolveu Fleishman Is in Trouble, ou A Nova Vida de Toby, a partir do romance homônimo que ela lançou em 2019. Na história, um médico nos seus 40 e poucos se descobre divorciado, e descobre o sofrimento de quem se vê divorciado sem querer isso. Ele ao mesmo tempo descobre que médicos têm lá o seu valor de mercado, e que agora, divorciado, ele sobe pro topo da cadeia alimentar baseada nos aplicativos de relacionamento.

O problema surge quando a sua ex-mulher decide deixar os filhos com ele e desaparecer. Toby Fleishman agora é um médico divorciado, desejado por muitas mulheres – a quem ele igualmente deseja – e portador de dois filhos, uma menina de 11 anos e um menino de nove. O relativamente jovem, relativamente rico e relativamente privilegiado médico judeu nova-iorquino morador do andar de cima, também conhecido como Upper East Side, agora precisa descobrir o que aconteceu com sua ex-mulher, porque ela abandonou a ele e filhos, e o que fazer com sua vida nestes tempos tão promissores quando complicados.

A série, como o romance, tem uma virada que acontece lá pelo sétimo episódio, em uma temporada de oito, mas não é isso que realmente importa, porque ela é boa desde o começo. O que importa, de verdade, é a sensação de que a mulher criadora desse romance e dessa série usa a história de Toby Fleishman para contar, na verdade, a história de sua desaparecida ex, Rachel.

Parece que a melhor forma de contar uma história de mulheres ainda pode ser a de a disfarçar com a história de um homem, que todos estamos mais acostumados a ver, ouvir, conhecer. A sensação é a de que Toby está ali, na verdade, para que venhamos, de alguma forma, a saber o que de verdade foi esse casamento para Rachel.

Os homens tendem mais a achar que tudo vai bem, enquanto o incêndio não chegar ao seu pé e as coisas esquentarem um pouco. As mulheres parecem achar que tudo vai mal muito antes de o fogo começar a se espalhar pela casa.

Talvez seja a hora de todos começarmos a entender o que vai bem, ou vai mal, pelo olhar das mulheres. Talvez o problema com Toby Fleishman, como o de tantos homens, seja ele estar tão absorvido com seus problemas que nunca percebeu o quanto Rachel odiava a ele, ou ao casamento deles. De várias formas, o problema de Fleishman transcende o problema dele mesmo, e se torna no problema de todos nós, casados e com filhos.

Talvez valha mesmo ver o que essa série tem pra dizer, mesmo que ela demore um tempo esboçando o que pretende. Por qualquer que seja o motivo, vejam. Ela pode ser encontrada no FX da Hulu, que está disponível por aí, em algum lugar.

Vejam.

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