Por que Joan é péssima?
Black Mirror, apesar de ser uma das melhores coisas já concebidas e realizadas nessa nova era das séries, não se apresenta como algo simples de se escrever a respeito. Ela é coisas demais, diferentes demais, e não se consegue abraçar muito facilmente.
Construída a partir de episódios não ligados entre si, ou sequenciais, Black Mirror investiga os efeitos das transformações da tecnologia sobre a nossa era, e esses efeitos nos remetem para algo que a gente chama de distópico, ou seja, o contrário do que a gente considera utópico, ou ideal.
A questão é: por que a tecnologia nos conduziria necessariamente para distopias, e não para sistemas melhores do que os que já conhecemos? A premissa de Black Mirror não é negar, a priori, as utopias produzidas pela tecnologia, mas especular sobre as possíveis distopias que ela produz. Parece justo, e necessário, e por isso ela é tão navegável e se afirma como importante, indo para a sexta temporada – que veio com tudo já no episódio de abertura, Joan É Péssima, e que destrincha a natureza do seu meio, o streaming, e do seu canal-mãe, a Netflix. Bota metalinguagem nisso, minha gente.
Joan É Péssima é, como dizer isso, deliciosa como uma torta de limão não muito doce, mas azeda o bastante pra nos lembrar que aquilo ali é, na alma, limão e não merengue. Nela, uma moça coincidentemente chamada Joan vê a sua vida replicada nos menores detalhes num canal de streaming chamado Streamberry, que vem a ser, exatamente, a Netflix. O susto de ver a própria vida replicada é superado pelo susto de ver a própria vida, ou o roteiro dela, sendo criado por inteligência artificial.
Joan passa a ser péssima não porque queira, ou mesmo por ser péssima. Ela se torna o que o algoritmo da Streamberry passa a achar que seja o melhor para o público. Joan se torna uma projeção dos desejos de quem a assiste, ou seja, o inverso do que é um ser humano. A compensação pra isso tudo é se ver representada pela Salma Hayek, nada menos. Já é um consolo.
Black Mirror sempre causa espanto, desconforto, inquietude, e por isso mesmo a série se mantém vivíssima no seu sexto ano de existência.
Vale lembrar que a tecnologia é uma criação humana, e que ela não foi inventada em 2023. Começamos fazendo fogo e moldando pedras; modificamos gramíneas na região da atual Turquia até que elas virassem trigo; criamos o bronze, e com ele utensílios e armas, que nos tornaram a espécie dominante sobre o planeta. Inventamos o arado e multiplicamos a produção de alimento, a roda e o carrinho de mão. Domesticamos cavalos e os convencemos a puxar uma coisa um pouco maior do que carrinhos de mão. Dominamos a tecnologia do uso do vapor, e criamos a indústria e nunca mais paramos de acelerar.
A questão atual não está na tecnologia em si, mas na velocidade com que a criamos. A gente precisa lembrar que tudo isso que está aí, telefone celular, internet, redes sociais, streaming, tudo, tem menos de 20 anos. É muito pouco tempo, e mal começamos a saber como passar o WhatsApp de um telefone pra outro sem arrasar nosso passado e pronto, já surge o ChatGPT pra colocar fogo no parquinho de novo.
Nós, humanos, sempre nos dividimos em nosso amor e temor pelo que é novo, e pelas coisas que nós mesmos criamos. Nunca deixamos de criar, apesar de tudo. Não vamos deixar justo agora.
E, enquanto ainda existimos, e podemos escolher o que ver, vamos todos juntos ver Black Mirror. Vamos afundar no poço das novas tecnologias do mesmo jeito, mas, pelo menos, nos entretendo enquanto aceleramos túnel adentro.
Vejam.