Uma coisa em qualquer cidade é inegável: as ruas são grandes personagens. Elas, que traçam linhas e recortam os espaços, acabam apresentando as situações do cotidiano, são como o palco de momentos que acontecem na vida. As ruas promovem encontros, desviam caminhos, abrem possibilidades. Daria para dizer que elas definem certas épocas e ajudam a escrever partes da história. Como em João do Rio, por exemplo. O autor de A arte encantadora das ruas (Paris, Garnier, 1908) talvez tenha sido um dos mais interessantes na arte de escrever sobre esses ricos cenários urbanos. Esse “escritor-jornalista, mais do que jornalista-escritor”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, trazia em suas crônicas uma repetida homenagem feita às ruas cariocas daquele início dos anos mil e novecentos. João do Rio estampava nos jornais a vida que corria entre esquinas e calçadas de um jeito muito particular naquela então Capital Federal. Mas se João do Rio fez literatura com aquele Rio de Janeiro em transformação, ele também ajuda a resgatar um autor interessante na cidade de Porto Alegre. Sim, é isso mesmo: um texto leva a outro, um autor remete a outro, uma rua encontra a outra. Dando uma boa avançada no tempo, algo para chegarmos até as décadas de trinta e quarenta do mesmo século vinte, encontramos a importante figura de Athos Damasceno Ferreira. Como cronista que tomava a pena para narrar Porto Alegre, o autor gaúcho compôs o livro Imagens Sentimentais da Cidade (1940). Obra que tem um registro admirável, marcando a importância das já inexistentes ruas de uma capital gaúcha modificada pela reforma urbana. Como ele escreveu sobre essas ruas? Do jeito que vamos mostrar agora. (Detalhe: a escrita será mantida sem atualização ortográfica) “Nem estudos, nem planos, nem projetos. Ruas e becos nasceram por si mesmos, e ao acaso. Por volta de 1839, a ex-povoação dos casais tinha-se como uma cidade pronta, no seu licencioso sistema de vias urbanas. Prontíssima. Em cima, descortinando o panorama todo da terra, ficava a rua da Igreja. Perto do rio – a da Praia. A que tinha uma curva – a rua do Cotovêlo. Onde havia uma pinguela – a da Ponte. Rua próxima ao local onde se enterravam os defuntos – rua do Cemitério. Caminho bonito – rua Bela. Obedientes sempre a tão imaginosa nomenclatura, outras e outras: — A Formosa, a Nova do Poço, a do Arvoredo, a da Varzinha, a da Cadeia, a Principal, a do Arroio, a do Ouvidor, a da Alegria, a do Rosário, a de S. José, a de Bragança, a da Misericórdia, a da Olaria, a da Figueira, a da Azenha, a de S. Catarina”. E assim Athos ajudava a compor um passado bastante rico de significados para a cidade que não era mais a mesma. Porto Alegre já passava a adotar nomes mais imponentes para suas ruas com a transformação sofrida nos anos vinte e trinta. Então as muitas vielas de antes deixaram para trás o sentido intimista, a proximidade que ajudava […]
Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?
Assine o Premium
ou faça login
Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!
Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!