Operação Sérgio da Costa Franco

Júlio de Castilhos e sua época: percurso de uma biografia

Change Size Text
Júlio de Castilhos e sua época: percurso de uma biografia

Sérgio da Costa Franco está entre indivíduos talentosos que experimentaram com excelência mais de uma existência profissional. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1954, aposentou-se em 1977 como membro do Ministério Público, tendo atuado como promotor nas cidades de Encantado, Quaraí, Soledade, Erechim e Porto Alegre. Antes, fora professor do ensino médio e servidor no IBGE e no Banco do Brasil. 

[Continua...]

[elementor-template id="36664"]

Sérgio da Costa Franco está entre indivíduos talentosos que experimentaram com excelência mais de uma existência profissional. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1954, aposentou-se em 1977 como membro do Ministério Público, tendo atuado como promotor nas cidades de Encantado, Quaraí, Soledade, Erechim e Porto Alegre. Antes, fora professor do ensino médio e servidor no IBGE e no Banco do Brasil. 

Em paralelo, militou no jornalismo. Entre 1969 e 1990, centenas de crônicas diárias publicadas no Correio do Povo e na Zero Hora, com acento localista e ênfase no cotidiano, tornaram-no afamado. Eram dias de glória dos jornais impressos e das crônicas. A primeira coletânea que as reuniu, Quarta Página, lançada em 1975, foi distinguida pela Academia Brasileira de Letras com o prêmio Carlos de Laet, nunca antes atribuído a um gaúcho. 

Além disso, formado em Geografia e História, também pela UFRGS, em 1948, pesquisou e escreveu sobre Porto Alegre, Jaguarão e sobre a política regional, sobretudo a da Primeira República (1889-1930). Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, presidiu-o entre 1996 e 1998. Investiu anos na organização do Arquivo Borges de Medeiros, sob guarda do Instituto, composto de milhares de cartas trocadas entre o ex-presidente do Estado e inúmeras lideranças, base para importantes pesquisas, esforço que por si só já inscreve seu nome nos anais da cultura rio-grandense. 

Costa Franco pertence a uma família intelectualizada. Seu pai, Álvaro, era juiz de Direito. Primo dos historiadores Nelson Werneck Sodré e Sérgio Buarque de Holanda, foi batizado em homenagem ao segundo. Os irmãos, Paulo e Álvaro, destacaram-se como diplomatas de carreira, atingindo postos elevados no Itamaraty. O cunhado, Laudelino Medeiros, foi reconhecido sociólogo (esteve na banca de doutoramento de Fernando Henrique Cardoso), que também se aventurou pela História.

Simpático à esquerda, Costa Franco esteve na iminência de ser cassado em 1964. O Procurador-Geral de Justiça, Lauro Pereira Guimarães, que se identificava com o regime, mas repelia intervenções externas na instituição, manteve-o próximo de si, em assessoria em seu gabinete. Seus méritos jurídicos, acima das questões ideológicas, também foram reconhecidos pelo Governador Walter Peracchi Barcellos, que o promoveu a Procurador.

A perspectiva jurídica, a intimidade com a palavra e sensibilidade jornalística combinaram-se naquele que talvez seja seu mais influente livro. Júlio de Castilhos e sua época, originalmente publicado em 1967 pela Editora Globo e reeditado em 1988 pela editora da UFRGS, já como clássico, surgiu como primeiro ensaio biográfico moderno sobre um dos mais emblemáticos personagens da trajetória republicana brasileira. Considerado no Rio Grande do Sul “Patriarca da República”, com direito a monumento em bronze entronizado na Praça da Matriz, coração cívico em Porto Alegre, Castilhos foi o idealizador da polêmica Constituição de 14 de julho de 1891, a primeira carta do Estado. Intimorato, aguerrido e, inclusive, persecutório, contra sua gestão se levantou a Revolução Federalista de 1893 a 1895, no qual estima-se ter perecido 1% da população do estado. Falecido em 1903, por décadas a política gaúcha vibrou sob o diapasão de sua figura, e não foram poucos os que consideraram estarem Getúlio Vargas, Leonel Brizola ou até os militares do AI 5 entre seus herdeiros (o ensaísta Décio Freitas chegou a dizer que Castilhos foi o “homem que inventou a ditadura no Brasil”, em razão do constitucionalismo autoritário por ele esgrimido). 

O ensaio retomava a primeira incursão de Costa Franco pelo tema, um artigo sobre o sentido histórico da Revolução Federalista lançado em 1962 no 5º volume da coletânea sobre os Fundamentos da cultura sul-rio-grandense, organizada pela antiga Faculdade de Filosofia da UFRGS, e que contava com contribuições de peso, como Athos Damasceno, Moysés Vellinho, Lourenço Prunes e José Salgado Martins. Costa Franco figurava, assim, nesse grupo, como estrela ascendente.  

Concebido como obra de divulgação, relativamente enxuta e de prosa fluente, Júlio de Castilhos e sua época conduz os leitores com clareza pelo cipoal de nomes, fatos e reviravoltas palacianas que emaranhou o dealbar republicano no estado meridional, contexto no qual Castilhos é descrito como demolidor implacável de rivais, garantindo desse modo a perenidade da narrativa. Agradou a um público amplo, mas ressoou também junto ao meio acadêmico, para o qual a atração estava na abordagem teórica, em cuja esteira introduziam-se conceitos e inovador paradigma explicativo.  

Até então, nossa política era contada sob o prisma dos grandes personagens, dividindo-se de acordo com os rebanhos partidários. A vertente republicano-castilhista, majoritária, espelhava a hegemonia do segmento vitorioso na Revolução de 1893. Era galhardamente enfrentada por uma corrente identificada aos irridentes partidos Federalista e Libertador, na qual pontificavam nomes como o de Wenceslau Escobar e Gustavo Moritz. Um terceiro grupo, menos notado, reunia monarquistas. Assim, era essencialmente explicada em termos de dissenso conceitual entre mandos de escol. 

Para os padrões da época, Costa Franco tentou abordagem imparcial, embora tenha deixado transparecer em mais de um momento certo entusiasmo pelo biografado, a quem chega a considerar o Robespierre brasileiro, cujo valor pessoal, honestidade e capacidade de comando não seriam questionados nem pelos adversários que o abominavam. Para Costa Franco, Castilhos, embora sectário, seria o oposto do demagogo e guardaria “religioso respeito pelas liberdades de pensamento e de opinião”.

Costa Franco inovou ao introduzir a noção de classe social. Num movimento mecanicista, típico do horizonte marxista da época (em parte inspirado em Werneck Sodré, que idealizou o militarismo florianista populista no início da república), atribuiu a cada partido o predomínio em uma região do estado e uma aliança estratégica com uma classe. Assim, a conservadora oposição estaria entranhada na região fronteiriça e se ligaria aos grandes estancieiros, enquanto o jovem Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) deveria sua vitalidade à zona de colonização ítalo-germânica, à burguesia e às classes médias urbanas. Entendeu que o Positivismo, ideologia que servira de suporte ao castilhismo, diferentemente da França, onde teria sido reacionário, assumiu no Rio Grande do Sul viés progressista. Em tal cenário, o PRR era percebido como uma agremiação disciplinada e programática, vetor para ação modernizante que distinguira o Rio Grande do Sul do restante do Brasil, a qual incensaria, inclusive, a ideia de que o capital teria responsabilidade social, podendo ser regulado pelo Poder Público, que se proporia até a encaminhar a “incorporação do proletariado à sociedade”, por meio de fórmulas compensatórias. Para Costa Franco, o Rio Grande do Sul não estaria sujeito ao sistema oligárquico e coronelista que caracterizou a República brasileira no período, pois os coronéis do interior seriam tão obedientes à máquina castilhista, bem como à de seu sucessor, Borges de Medeiros, que poderiam ser percebidos como burocratas a exercerem interventorias estáveis, especialmente na região serrana, onde geriam um celeiro de votos.

O esquema analítico ganhou aderência e revelou-se longevo. Foi abraçado e amplificado pelo importante trabalho do brasilianista Joseph Love, de 1971. No ano seguinte, uma dissertação de mestrado defendida na Geografia da USP por Geraldo Müller transmutou o mecanicismo de Werneck-Costa Franco em funcionalismo, inspirado no marxista Nico Poulantzas, então em voga. O estado foi aí percebido como fazendo sempre todo o necessário para amparar a acumulação capitalista, desenhado assim como indispensável indutor do desenvolvimento, função que conciliaria com a promoção de justiça social. A fórmula pareceu aos acadêmicos sedutora e repercutiu até os anos 1990, com destaque para os textos dos cientistas políticos Céli Pinto e Hélgio Trindade, da UFRGS. A política sul-rio-grandense foi idealizada como mais qualificada do que a do Brasil e o PRR percebido quase como um mito fundante. O sociólogo Miguel Bodea chegou a ver nele um precursor do trabalhismo brizolista. Não faltou quem expandisse essa correlação ao PT, que alguns festejavam por sua combatividade programática. 

Assim, curiosamente, um modelo interpretativo desenvolvido por um historiador não engajado na carreira universitária tornava-se, no espaço de alguns anos, dominante na academia, convertendo-se em esteio para o elogio do estado intervencionista, de partidos centralizados e hierarquizados e de políticas ideologizadas. 

Porém, como é natural à dinâmica historiográfica, questionamentos começaram a brotar, já no início dos anos 1980. Manoel Medeiros expôs a existência de republicanos e oposicionistas (maragatos) nas regiões, chamando a atenção para os métodos violentos do PRR e para cisões internas. Nelson Boeira e Ricardo Vélez Rodriguez desconstruíram a ideia de tradução automática entre o Positivismo e o castilhismo, mostrando descontinuidades entre ambos, bem como o descompasso entre discurso e prática. Duncan Baretta revelou causas econômicas da Revolução Federalista, associando-as ao intenso debate sobre comércio livre no final do século XIX, então considerado pelas associações comerciais das cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande como contrabando. Margaret Bakos indicou que o discurso oficial de estabilidade orçamentária deblaterado pelo PRR não correspondia à realidade, pois em Porto Alegre a administração se via às voltas com déficits sistemáticos. Loiva Félix, estudando casos na região do planalto serrano, concluiu que alguns chefes locais não poderiam ser caracterizados como títeres de Borges de Medeiros e que entre eles se estabelecia uma relação de confronto, cooptação e cooperação, típica do sistema coronelista. Eloísa Capovilla e Ivo Caggiani confirmaram ser o PRR cindido por facções. Núncia Constantino sublinhou não estarem os imigrantes italianos nem perto de se comportarem como súditos de “tranquilas ditaduras serranas”, posicionando-se muitas vezes contrariamente ao governo. René Gertz mostrou que as zonas de colonização alemã também seriam politicamente instáveis. Regina Weber apontou as limitações do suposto progressismo do PRR na área da saúde pública. Inúmeros trabalhos vêm se dedicando desde então a aprofundar essas e outras questões, superando o modelo analítico marxista – mecanicista ou funcionalista – dos anos 1960 e 1970. 

O próprio Costa Franco reconheceu ter a obra perdido parte de sua força explicativa quando da reedição, citando alguns trabalhos que tinham já vindo a lume em 20 anos. E fez bem em resistir à tentação de refazer o próprio texto, porque, afinal, a escrita da História é permanentemente desafiada por novas fontes, teorias e olhares. Em idade madura, não fez segredo de que redigiria o livro de outro modo, o que se confirma em artigos recentes que lavrou sobre a oposição federalista-libertadora, nos quais reconheceu a legitimidade da luta em prol da sobrevivência de princípios democráticos solapados pela Constituição de 1891.

Portanto, assim como Costa Franco revolucionara a compreensão do período, pesquisas supervenientes compuseram interpretações diversas. De qualquer forma, a influência da obra foi tão extensa e profunda que sobrevive como marco de uma época que consolidou uma perspectiva específica do tempo vivido por Júlio de Castilhos. 

O livro de Costa Franco guarda atualidade como narrativa vivaz e bem cerzida de um período complexo e foi pioneiro no manejo do conceito de classe social, até hoje de utilidade para os analistas. E se parte da tese central foi revista, a obra segue como leitura inescapável para todos aqueles que pretendem se enfronhar na política republicana sul-rio-grandense, por ter lançado os alicerces do debate que animou a historiografia a respeito da Primeira República na segunda metade do século XX. 


Gunter Axt é doutor em História Social pela USP (2001), fez estágio pós-doutoral junto ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (2006) e junto ao PPG em Direito da UFSC (2014-2016). Foi professor visitante na Université Denis Diderot, Paris VII, junto ao Institut de la Pensée Contemporaine (2009). Seu livro mais importante é Gênese do Estado Moderno no RS, resultado de sua tese de doutorado (Porto Alegre: editora Paiol, 2011). Tem organizado vários livros, entre os quais se salienta As Guerras dos Gaúchos (Porto Alegre: editora Nova Prova, 2009).

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.