Ensaio

O boom antirracista

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O boom antirracista

Estamos diante do ocaso da invisibilidade do racismo enquanto tema de debate na opinião pública massiva ocidental. Lembrando, pelo menos, dos assassinatos de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour do IAPI, em Porto Alegre, temos dois exemplos de repercussão global de crimes racistas e, por conseguinte, do assunto racismo em todos os noticiários, programas de debate, conversas informais. Está claro que é um dos temas mais latentes da nossa atualidade, e por isso não surpreende que nosso tempo histórico engendre obras de arte que tratem do, ou que tenham o, racismo como ambiência estrutural da narrativa, como O avesso da pele, romance de Jeferson Tenório, sucesso de vendas desde quando lançado, em agosto de 2020, em meio à pandemia de coronavírus.

Um levantamento feito pelo próprio autor e analisado por nós tenta dar materialidade a esse sucesso, apontando as atividades em que Jeferson Tenório teve participação direta, através de lives, palestras, entrevistas, colunas, ou indireta, digamos assim, sendo citado ou tendo seu livro como objeto de análise crítica, conversa e difusão. Para isso montamos uma tabela para melhor ilustrar essas atividades, para contrastá-las entre si, e também para comentar aspectos interessantes de algumas delas e, claro, a relação de tudo isso com o momento pelo qual passamos.

Jeferson Tenório, até então autor de dois livros, todos de circulação regional, publicou em agosto passado O avesso da pele pela maior editora em atividade no Brasil, a Companhia das Letras, de São Paulo, emplacando seu primeiro best-seller. O livro explodiu em vendas, por razões a serem evidenciadas, e Tenório despontou como um dos principais autores contemporâneos da literatura brasileira. Este texto apresentará e comentará alguns elementos empíricos da recepção deste livro, não no quesito crítico/estético, mas no da ocupação de espaços que ele e seu autor tiveram desde agosto até dezembro de 2020 na esfera pública gaúcha, nacional e internacional.

Pois bem, as atividades em questão são: lives, entrevista em meio digital, televisivo, em rádio e por meio impresso, resenhas e análises críticas que o livro e/ou o autor recebeu, participação em podcasts, gravação de vídeos, eventos, aulas/grupo de leituras e cursos, menções ao autor e/ou ao romance, e produções do próprio autor, como colunas, crônicas, contos e artigos. Tudo isto distribuído ao largo de cinco meses, de agosto a dezembro de 2020, formando a série histórica que analisamos. A tabela abaixo apresenta essas atividades e as ocorrências nos meses supracitados, em números absolutos, conforme levantamento do próprio autor.

De primeira podemos apontar o mês em que o autor e seu romance geraram maior repercussão: novembro. Sim, vemos que este mês – com 74 aparições – é o apogeu de um crescendo que começa quando do lançamento, em agosto. Uma queda em dezembro certamente se explica pelo fim de ano, com um cansaço acentuado pela atipicidade de 2020, que acarretou uma menor frequência de atividades. Novembro também é o mês, é preciso recordar, não só da Consciência Negra, mas do assassinato de João Alberto no dia 19, véspera da Consciência Negra. Certo que o assassinato ocorreu no final do segundo para o terceiro e último terço de novembro, mas talvez não devamos descartar este fatídico evento das contas, porque ele gerou uma quase rebelião social em Porto Alegre, que pode ter inflado ainda mais os debates sobre o racismo estrutural do nosso país.

Num ano em que boa parte da nossa experiência foi dentro de casa, comunicando-nos virtualmente, trabalhando e estudando de forma digital, de uma maneira muitas vezes forçada e abrupta, não surpreende, então, que sejam as lives a única atividade direta de que Jeferson Tenório participou, contando todos os cinco meses analisados. Há, inclusive, uma saturação desse formato, que foi amplamente usado nesse ano: resumindo, as pessoas estão cansadas de lives, como indica a queda brusca de 15 para 6 na comparação de novembro para dezembro. As menções também aconteceram em todos os meses, com 69 entradas ao todo.

Para dar destaque às atividades que aconteceram na maioria dos meses de nosso escopo (escolhemos como critério ter no máximo um mês sem atividade), perdendo somente para as lives e as menções, encontramos as entrevistas digitais, 31 ao todo, superando inclusive as 28 lives. O primeiro patrono negro da Feira do Livro de Porto Alegre desde sua primeira edição, lá nos idos de 1955, na mesma Praça da Alfândega, participou de muitos eventos ao largo desses cinco meses, sendo esta a atividade com maior repercussão após as entrevistas digitais, com 28 aparições, o mesmo número de lives.

Depois se seguem ainda entrevistas em meio impresso, podcasts, aulas/grupos de leitura, não nessa ordem, todos compromissos presentes em 4/5 do tempo analisado. Destaca-se, junto a esse grupo, o tópico de resenha/análise/crítica, que mostra ter sido O avesso da pele objeto de análises críticas em 15 oportunidades, comentários esses oriundos de especialistas, como o crítico literário Luiz Maurício Azevedo, o primeiro a referendar o romance com um artigo no “Caderno de Sábado” do jornal Correio do Povo. Essa relação da obra com a crítica, difundidas ambas na opinião pública, é o que faz a literatura se movimentar, encontrar leitores, gerando aquilo que Antonio Candido chamou de sistema literário, que é, grosso modo, uma comunicação constante e recíproca entre autores, obras e público leitor.

As médias mensais mais altas da série são as menções, 13,8, seguida de entrevista em meio digital, 7,75, e de eventos, com 7. As atividades menos frequentes são conto, coluna e crônica, todas com média mensal de 1. As crônicas, no entanto, irão aumentar, pois Tenório agora é colunista de GZH no “Segundo Caderno”, com texto quinzenal. Este é um dado importante: o autor passou a ser, em meados de dezembro, colunista fixo do maior jornal em circulação no Rio Grande do Sul, o jornal Zero Hora, fato simbólico de peso, pois sua opinião atingirá um público mais amplo que seus leitores literários.

Estando o Rio Grande do Sul muito mais próximo cultural e geograficamente de países como Argentina e Uruguai do que em relação ao restante do país, e por questões históricas, políticas e econômicas, instaurou-se uma tensão prévia: o Rio Grande do Sul é tido como província caipira, e o sudeste, principalmente São Paulo, como a metrópole cosmopolita. Sob o ponto de vista literário, o cenário social e geográfico sul-riograndense da obra se correlaciona com a edição e venda do livro físico pela Companhia das Letras, e aqui temos um ponto interessante. Tenório se projetou abruptamente para o cenário nacional e internacional de divulgação e circulação da literatura brasileira, passando pelos espaços tradicionais na mídia como a Folha de São Paulo, e terminando o ano na mesa 10 da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, ao lado da escritora estadunidense Regina Porter. Na tabela abaixo podemos ver a relação entre o local e o número total de eventos/menções em que Jeferson participou e/ou foi citado por mês. (É possível que haja uma margem de erro devido a inconsistências na hora da verificação da origem de algumas citações/participações.)

Como podemos observar, o âmbito de circulação do autor se alterou, subiu rapidamente. Já em agosto é citado por Zeca Camargo e Leandro Karnal, duas figuras públicas, cada um a seu modo e com seu peso. No mesmo mês é mencionado na Itália e em Portugal. De agosto a outubro, se fizéssemos um gráfico para comparar, veríamos que o número de aparições do autor e do romance se equilibra entre o estado e o restante do país, capitaneado por São Paulo, claro. Em novembro, sua circulação se restringe mais ao RS, ao passo que em dezembro a grande maioria é fora, principalmente em SP, contando também com uma aula de Pequim, China, e um congresso de Portugal. No plano internacional, o autor ainda participou, ao largo desses cinco meses, de evento de Miami, EUA, uma live argentina, um evento berlinense, entrevistas digitais para EUA e Alemanha, e recebeu uma resenha de Luís Moura em Portugal.

Jeferson Tenório foi mencionado ou participou diretamente em atividades, além dos já citados RS e SP, em Mato Grosso, Pernambuco, Minas Gerais, Distrito Federal, Amazonas, Acre, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul. Esteve e/ou foi foco de atenções em canais importantes de arte na TV, como o Arte1, a revista Piauí, e o Conversa com Bial, da Globo, colocando Jeferson Tenório ao lado de entrevistados como Barack Obama e Woody Allen. No Rio Grande do Sul, seu nome apareceu com força aqui na Parêntese, no Correio do Povo e na Zero Hora; em São Paulo, Estadão, mas principalmente a Folha de S. Paulo.    Ángel Rama, crítico literário uruguaio, buscou certa feita explicar o chamado boom da literatura latino-americana, um momento entre a década de 1960 e 70 em que houve a convergência entre uma geração maravilhosa de escritores latino-americanos e a implementação madura do mercado editorial no continente. Embora não gostasse do nome, americanizado e oriundo de uma onomatopéia de guerra, “boom” também significava um estrondo, curto e grosso, que balançou a história da literatura recentemente durante um período muito curto. Não sabemos se essa onda de literatura que não tem medo de falar de racismo (embora não fale só disso), e que traz à tona a história dos historicamente segregados, mostrando experiências humanas verdadeiras num mundo de autômatos, irá se apagar em breve, como o boom latino-americano. O certo é que estamos diante de um verdadeiro sucesso chamado O avesso da pele. Os motivos de seu sucesso e o alcance da sua sofisticação literária virão com o tempo, o que certamente abrirá caminho para outras obras, que pela vereda aberta trilharão o caminho rumo à construção de um cânone literário brasileiro mais arejado, antirracista e completamente heterogêneo, tal como nossa sociedade verdadeiramente é.


Rodrigo Mendes é estudante de Letras na UFRGS.

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