Juremir Machado da Silva

A democracia é relativa?

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A democracia é relativa? Em maio, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, foi recebido por Lula no Palácio do Itamaraty | Foto Antônio Cruz/EBC

Lula está fazendo um bom governo. O Brasil voltou à civilidade. Indicadores econômicos mostram-se favoráveis. A militância não admite críticas, mas há dois pontos em que Lula tem falhado: a Guerra da Ucrânia e os elogios a regimes não democráticos por simpatias ideológicas. Não faz muito, Lula disse que democracia é algo relativo. Jornalistas criticaram duramente essa posição. Os defensores contra-atacaram sugerindo que o presidente está certo e que sempre foi assim, desde a Grécia, onde mulheres, estrangeiros e escravos estavam fora do jogo. Alguns chegaram a afirmar que Estados Unidos, apoiadores de ditaduras, e Inglaterra, por causa da extradição de Julian Assange, não são verdadeiras democracias. Por ironia, a Venezuela seria.

O que, afinal, faz uma democracia? Qual o mínimo essencial sem a qual não há democracia? Não existem democracia sem eleição, mas existe eleição sem democracia. Não há democracia sem eleição, oposição legal e apta a disputar o poder, Estado de Direito, judiciário independente, devido processo legal, liberdade de expressão e liberdade de imprensa. A lei modula algumas dessas liberdades. Não pode haver liberdade para caluniar, infamar, difamar, ser racista, etc. Democracia e justiça social devem andar juntas, mas não são sinônimos. Extraditar Assange me parece um erro, mas é uma decisão de justiça. Está dentro do jogo democrático. Apoiar ditaduras mancha a democracia americana, mas não torna China, Cuba, Venezuela, Coreia do Norte, Síria, Arábia Saudita e Afeganistão democracias. No limite, se poderia dizer que existem democracias mínimas e máximas, mais ou menos substantivas.

O núcleo mínimo da democracia é inegociável, sem relativização possível: eleições regulares, oposição, contraditório, etc. Regime de partido único é antidemocrático por definição. Lula é um socialdemocrata que faz acenos para sua base em parte ainda marxista. O marxismo-leninismo acreditava no papel de uma vanguarda iluminada abrindo caminho para a sociedade emancipada. Nesse sentido, a chamada democracia formal, liberal ou burguesa poderia ser aparelhada ou atropelada. Na esquerda brasileira atual, há divisão sobre as declarações de Lula quanto a Guerra da Ucrânia e regimes como os da Venezuela e da Nicarágua. Em entrevista, a deputada Luciana Genro (PSOL) disse que a Ucrânia tem o direito de se defender do agressor. Considerou também ditatorial o atual governo da Nicarágua e indicou que Nicolas Maduro caminha a grandes passos para uma ditadura.

O elemento que orienta o olhar da esquerda brasileira mais tradicional ainda é o antiamericanismo. Enxerga-se o imperialismo americano, não o russo. Intelectuais de esquerda de renome internacional, como Slavoj Zizek, não têm qualquer dúvida: Putin é o autocrata agressor. Lula parece pensar que regimes como o da Venezuela são obrigados a agir como agem em função das represálias norte-americanas. Resta saber de que modo as políticas erradas dos Estados Unidos produzem atitudes antidemocráticas em seus inimigos. Multiplicam-se os jornalistas da grande mídia que aproveitam ocasiões como essa para fazer média, mostrando-se divergentes dos demais.

Lula é democrata. Sabe jogar com as palavras. Distribui afagos conforme as conveniências. Líder progressista carismático, maior estrela internacional de esquerda, pode contribuir para que o seu campo na América Latina dê um passo histórico e abrace de vez a democracia. No seu mínimo conceitual, ela é ou não é. Nada impede que se pense esse mínimo como universalizável. A tentativa de postular o regime chinês como de outro tipo, fora das categorias ocidentais, é uma simples manobra ideológica de encobrimento das evidências. Se as democracias ocidentais são fracas, é preciso fazer mais. Não menos.

Em tempos de cancelamentos, dizer isso leva ao ostracismo.

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