Entrevista

“O anti-imperialismo de Ortega é uma mentira repetida mil vezes até virar verdade”, diz ex-guerrilheira Mónica Baltodano

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“O anti-imperialismo de Ortega é uma mentira repetida mil vezes até virar verdade”, diz ex-guerrilheira Mónica Baltodano Baltodano esteve em Porto Alegre, quando viajou a convite de organizações do Cone Sul para expor a realidade nicaraguense | Foto: Acervo pessoal

Uma das lideranças na revolução que levou os sandinistas ao poder em 1979, Baltodano se converteu em crítica ferrenha da escalada autoritária de Daniel Ortega nos últimos anos – e pede que a esquerda latino-americana perca o medo de criticar o que ocorre na Nicarágua

Quando a Revolução Nicaraguense triunfou, em 1979, iniciando um duro período de guerra civil e sabotagens internacionais, Mónica Baltodano estava entre os nomes mais destacados da guerrilha transformada em governo que tentava dar um novo rumo ao empobrecido país centro-americano. Militante sandinista desde o início daquela década, em um sistema dominado por homens, ela foi uma de apenas três mulheres a atingir o título de Comandante Guerrilheira, estendido a poucas dezenas de líderes revolucionários que depois passaram a conduzir os ambiciosos projetos que envolviam uma ampla reforma agrária, alfabetização massiva no campo e resistência à contrarrevolução impulsionada pelas velhas elites com apoio dos Estados Unidos.

Hoje, aos 68 anos, Baltodano vive exilada na Costa Rica. Convertida em uma das críticas mais ferrenhas do regime encabeçado pelo também ex-guerrilheiro Daniel Ortega, tornou-se um dos alvos preferenciais desde que o governo nicaraguense iniciou sua atual escalada autoritária, em 2018. “Ortega é duplamente cruel com aqueles que nos originamos no sandinismo”, ela conta, citando o movimento inspirado em Augusto César Sandino (1895-1934) que derrocou a dinastia da família Somoza na famosa revolução dos anos 70 – e, pelo menos no nome, governa o país até hoje. Mas, se as atenções com a Nicarágua ganharam força nos últimos cinco anos, no caso de Mónica Baltodano as denúncias começaram duas décadas mais cedo, em 1998, quando Ortega firmou um “pacto” de divisão de poderes com a direita que governava o país na época.

Contrariando o que muitas vezes ocorre com dissidentes, Baltodano não deu as costas às bandeiras pelas quais pegou em armas. Pelo contrário: ainda de esquerda e sandinista, ela entende que o que existe hoje na Nicarágua é apenas o uso da retórica revolucionária para concentrar o poder e embolsar as riquezas do país cedendo a interesses estrangeiros. Sentindo na pele a perseguição, ela acusa Daniel Ortega de ter traído os ex-companheiros de armas.

Sua história não é única, mas sua capacidade de criticar o que chama de “orteguismo” com a legitimidade de quem lutou na guerrilha vai se tornando cada vez mais rara – assim como a possibilidade de fazer um apelo para que as esquerdas latino-americanas parem de ter reservas a criticar de forma mais enfática os rumos tomados por Ortega. Conforme fala, Mónica também recorda outros dissidentes silenciados: casos de Hugo Torres, que salvou o próprio Ortega da cadeia em 1974, e morreu na prisão política no ano passado; e Dora María Téllez, outra heroína revolucionária que também chegou a ser Comandante Guerrilheira, e passou quase dois anos presa por Ortega até ser expulsa do país no início deste ano. 

Em parceria com o GIRO LATINO, a Parêntese conversou com Mónica Baltodano durante sua visita a Porto Alegre em abril, em meio a sua viagem a convite de diferentes organizações políticas do Cone Sul para expor a realidade nicaraguense em eventos no Brasil e nos países vizinhos. A entrevista pode ser lida na sequência.

Vamos começar pelo começo. Para que nosso leitor saiba quem está falando: conte um pouco da sua trajetória como militante, antes e durante a guerrilha, até os dias atuais.

Sou Mónica Baltodano, tenho 68 anos, e me incorporei à luta social na minha cidade natal de León, muito jovem. Antes, fiz muito trabalho social ainda na escola, em bairros marginalizados e comunidades campesinas. Aos 15 anos me envolvi na luta política, não apenas social, após um estupro cometido pela Guarda [Nacional, o braço armado da ditadura dos Somoza, sob comando direto da família] contra uma prisioneira. A partir daí, fiz parte de movimentos juvenis cristãos que começavam a questionar o papel da religião diante da injustiça, e acompanhamos as lutas dos professores por salários, a luta pela liberdade dos presos políticos que já existiam na época. Quando cheguei à universidade, rapidamente comecei a fazer parte das organizações estudantis, que já eram influenciadas pelo sandinismo, e entrei na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) em 1972. Dois anos depois, passei à clandestinidade, trabalhei no norte como responsável militar, até que fui presa e passei dois anos assim. Quando saí, me deixaram a cargo da estrutura da GPP [Guerra Popular Prolongada, uma das três tendências internas da FSLN], em 1976 fiquei responsável por Manágua e, quando se dá a unidade das tendências, faço parte de um Estado-Maior Conjunto. 

[Na revolução de 1979] participei da tomada de Jinotepe e de Granada, fui a única do Estado-Maior que esteve nos combates dessas duas cidades. Inclusive há um poema de Eduardo Galeano sobre como o chefe militar de Granada não quis se render quando se deu conta que teria que entregar as armas a uma mulher. Depois, tive responsabilidades organizacionais e institucionais, sempre vinculada a questões de território, cheguei a ser vice-ministra da Presidência, encarregada dos municípios. Até que perdemos as eleições em 1990. Nessa época, virei vereadora em Manágua e fiz uma luta muito forte contra a corrupção do prefeito Arnoldo Alemán, que mais tarde viraria presidente [entre 1997 e 2002] e faria um pacto com Daniel Ortega – um pacto que eu fui totalmente contra, já como deputada e parte da direção nacional do FSLN.

Conforme fui votando contra essas reformas, foram me excluindo e acabei me distanciando. Fui me dedicando ao tema dos movimentos sociais, até que vieram as eleições de 2006 e formamos outra aliança, com o Movimento Renovador Sandinista. Nessa época eu virei deputada de oposição, e já nessa campanha eleitoral nós começamos a dizer que Ortega, seguindo por aquele caminho, acabaria se convertendo em ditador. Assim, quando chega a sublevação em 2018, já temos um papel muito beligerante de oposição – minha filha, por exemplo, foi assessora de um movimento campesino que lutou contra uma concessão absurda de Ortega que segue vigente. 

Nós apoiamos os protestos em 2018 e a partir daí há uma perseguição muito brutal a todos os que estiveram desse lado. Meu esposo, de 77 anos, dava apoio intelectual, declarações na TV, escrevia. Minha filha levava víveres a quem estava na barricada. Com tudo o que veio depois, passamos a correr perigo, e em 2021 saímos ilegais do país, para o exílio. No último mês de fevereiro, Ortega nos tirou a nacionalidade, tirou a pensão de aposentadoria, tirou a cidadania e anulou nossos registros de nascimento, desapropriou nossa casa, cujo aluguel era a única renda que tínhamos para sobreviver no exílio. Eles pensavam que iam nos calar com isso, mas decidimos seguir lutando. Por isso estamos aqui. Vemos essa viagem como parte dessa luta.

Eu ia questioná-la exatamente sobre isso: a senhora está exilada hoje, mas há vários relatos de perseguição a pessoas que ficaram na Nicarágua – familiares e amigos dos exilados. Não existe medo de que seu ativismo, mesmo fora do país, possa ter repercussões para quem ficou lá?

Sim. Todos os exilados vivem com esse medo. Alguns escolhem o caminho de não dizer mais nada. No nosso caso, praticamente todos os meus filhos estão fora da Nicarágua. Temos uma irmã que ficou no país para cuidar de meu pai, que tem 94 anos, e de outra irmã que sofreu um derrame. E para ela nós orientamos que não diga nada, não faça nada contra o governo. Sua missão é ajudar a cuidar da família. A vida se desordena para todos. Recentemente estava falando com o dono de uma rádio que se opôs a Ortega: ele teve as contas bancárias congeladas, também tiraram a pensão de aposentadoria. E tiraram até a casa que está no nome dos seus filhos, que não participaram em nada, mas tiraram a propriedade como represália, e não deixaram levar embora nem uma cueca. São condutas de uma irracionalidade tremenda, parece uma conjura de loucos, que fazem coisas realmente fascistas.

Hoje, essa oposição a Ortega reúne setores amplos e diversos: partidos de esquerda à direita, empresários, Igreja, movimentos sociais… E sempre surge o contra-argumento, de que aqueles que questionam Ortega na verdade são agentes do imperialismo, pessoas pagas pelos Estados Unidos. Como você encara essa acusação?

Ortega foi muito eficiente em manipular. E uma das suas manipulações é se apresentar como anti-imperialista. Mas, se você revisar sua relação com os Estados Unidos, foram sempre harmoniosas. Um exemplo: nos governos de Violeta [Chamorro, entre 1990 e 1997], de Arnoldo Alemán [1997 a 2002], de Enrique Bolaños [2002 a 2007, último presidente antes do retorno de Ortega ao poder], todos tiveram sérios problemas com os EUA pelo tema da destruição dos mísseis SAM-7. Eram mísseis soviéticos que ficaram a cargo do Exército após a revolução, e cada governo sofreu pressões enormes para terminar de destruí-los. O Exército fazia pouco a pouco, mas não aceitava fazer isso só porque os EUA queriam. Quando volta Daniel Ortega em 2007, acabou o problema: ele fez exatamente o que os gringos queriam com os SAM-7, nunca mais se falou sobre isso.

Ortega também é o muro de contenção da migração que vem do sul. Nunca houve tanta perseguição aos migrantes. Chegou a haver 5 mil cubanos em um acampamento na Costa Rica porque ele determinou que não passariam nem cubanos nem haitianos. Ortega cumpre as políticas dos EUA contra a migração e o narcotráfico, com operações conjuntas no Pacífico. E a principal questão é a política econômica: Ortega, com votos de seus aliados, aprova o tratado de livre-comércio com os EUA, e até hoje 60% das exportações da Nicarágua vão para lá. Ele disse que é anti-imperialista, e os bobos que não analisam, acreditam nele. Em dezembro de 2021, o chefe militar do Comando Sul dos EUA teve uma atividade com o Exército da Nicarágua e deu um discurso exaltando esse exército de Ortega.

Até hoje, a única coisa que os EUA fizeram foi aplicar sanções pessoais: Ortega e pessoas próximas não podem entrar ou ter contas bancárias nos EUA. Isso não faz efeito, só favorece o discurso do próprio Ortega. Nós somos muito céticos com o que dizem os EUA. Na época de Donald Trump, um de seus conselheiros, o famoso John Bolton, dizia que a tríade do mal era Nicarágua, Cuba e Venezuela. Isso não ajuda em nada uma análise crítica, porque são processos muito diferentes em cada país. Não há bloqueio na Nicarágua como há em Cuba, por exemplo. Isso não permite dar foco às violações de direitos humanos que tinham começado a ocorrer na Nicarágua. E ajuda menos ainda quando essa leitura é feita a partir da esquerda, quando pensam “bom, se falou contra os EUA é um grande revolucionário”. Qualquer um pode falar contra os EUA, qualquer um pode dizer que é sandinista e não ter nada a ver com Sandino.

Mónica, com imagem de Sandino atrás (Acervo pessoal)

É preciso analisar o que realmente se faz para se qualificar como alguém de esquerda. Cerca de 40% do território nacional está cedido a mineradoras estrangeiras. Isso é obra de Ortega. Há concessões de pesca para empresas transnacionais, que são brutais para o país e enriquecem essas companhias. Ele não mudou em nada a lógica do capital. Pelo contrário. Quando eu era deputada [entre 2007 e 2011, já no novo governo Ortega], eu dizia que o Parlamento parecia o escritório de advocacia das transnacionais, porque facilitava tudo para elas, que nunca ganharam tanto como com Daniel Ortega. Ele próprio já é um grande burguês, com interesses materiais. E toda sua família, que infelizmente é muito grande, porque ele tem sete filhos – todos eles têm interesses empresariais.

O que Daniel Ortega tem desde que chegou ao governo é um propósito de poder baseado no controle das armas e no controle de todas as instituições: a Corte Suprema, o Conselho Supremo Eleitoral, todos os demais poderes subordinados a sua pessoa. E agora com a repressão após 2018 ele tem que se justificar, e faz isso dizendo que há um grande plano dos EUA, que é um projeto imperialista. E como Goebbels [ministro de Propaganda da Alemanha nazista] repete e repete uma mentira mil vezes até que se torne verdade. Mas não tem nenhum anti-imperialismo. E mesmo que fosse verdade esse anti-imperialismo, penso que é um erro grave das leituras das esquerdas quando justificam a repressão por isso. Não é justificável matar 350 jovens nas manifestações.

Vamos voltar ao pacto de Ortega com Alemán. Por aqui, quando se pensa nas críticas a Ortega, isso ocorre a partir de 2018, mas você já havia começado a denunciá-lo 20 anos mais cedo. De que maneira ele já se afastava do sandinismo e ia na direção daquilo que você define hoje como “orteguismo”?

Houve um processo que talvez tenha começado antes mesmo da derrota eleitoral em 1990. Na transição entre a derrota e a entrega do governo, aconteceu um fenômeno que ficou conhecido como a “Piñata”. Começou como uma busca por regularizar a situação fundiária dos campesinos, porque a revolução fez reforma agrária, entregou terras, mas não deu força jurídica com títulos de propriedade e escrituras. Então, antes de entregar o governo, foram feitas leis apressadas para legalizar a situação dos campesinos. No meio dessa correria, muitos dirigentes se aproveitaram para assumir o controle de propriedades. Foi a primeira mancha da revolução, algo questionado por gente como Fernando e Ernesto Cardenal [irmãos, sacerdotes jesuítas adeptos da teologia da libertação, que fizeram parte do governo revolucionário e depois se tornaram críticos de Ortega]. O próprio Eduardo Galeano tinha uma frase famosa inspirada por essa situação, sobre pessoas que tinham estado dispostas a perder a vida e agora não estavam mais dispostas a perder os bens materiais.

Esse foi um primeiro elemento. Outra situação foi a transição que envolvia desmobilizar os Contras [grupos armados apoiados pelos EUA que combateram os sandinistas na guerra civil que se estendeu entre a Revolução de 1979 e a entrega do poder em 1990], desmobilizando 17 mil soldados também do Exército. Daniel Ortega se aproveitou dessas tensões para construir um grupo de poder, liderar revoltas contra o governo de Violeta Chamorro e se converter na pessoa que aparecia negociando em nome dos operários e dos campesinos. Mas negociava principalmente em causa própria. Isso acabou sendo visto mais claramente quando chegou Arnoldo Alemán à Presidência, e eles firmam o pacto em 1998: criaram um modelo que na prática estabelecia um bipartidarismo com cada um deles à frente de uma das forças políticas, porque tudo fica repartido entre o primeiro e o segundo lugar das eleições e é preciso muitos anos para criar uma nova força.

Os EUA deram sua bênção ao pacto, diziam que “nos EUA funciona o bipartidarismo”. Então Alemán e Ortega repartem as instituições entre si. E isso dá condições para que Ortega volte mais facilmente ao poder, pois reformam a Constituição baixando a porcentagem de votos necessários para ganhar a eleição. Em 2007, Ortega é eleito com 38% dos votos. Em troca da redução da porcentagem, ele dá governabilidade ao governo de direita que estava na época. Como ele controlava os sindicatos e o movimento campesino, decidia quem subia deles para concorrer a cargos no Parlamento e assumir postos de comando, não ocorreu mais nenhuma greve. A única greve que tentam fazer já vem nos anos 2000 com o próprio Ortega no poder, e é brutalmente reprimida.

Esse pacto foi o pecado original, mas era só a parte mais visível. Embaixo da mesa, repartiam não só o controle político, mas também as propriedades. Porque se você controla a Corte Suprema, controla também as decisões sobre processos que vinham da época da revolução em torno da posse de terras. Tudo isso se resolvia nessa Justiça controlada pelos dois mafiosos, que começaram a jogar com o país como se estivessem em uma mesa de pôquer. Isso explica porque a Nicarágua está assim hoje. Agora, a direita não quer saber nada de nós, quer controlar a oposição e diz que somos os culpados por Daniel Ortega. E minha resposta é: eu estou lutando há 20 anos, quem fez o pacto com ele foram vocês, que dividiram o poder com ele e o apoiaram. O que hoje vivemos é uma monstruosidade, um Frankenstein que obviamente se originou no sandinismo, mas cada setor político tem seu pedaço na deformação. É um produto social de todos nós. O grande capital apoiou Ortega nos primeiros anos após o retorno ao poder. Todos precisam reconhecer sua responsabilidade nisso para não repetir esse erro no futuro.

Por sinal, uma das análises que são feitas hoje é que essa fragmentação da oposição ajudou Ortega a consolidar o poder absoluto que tem hoje. Como fazer uma reconciliação entre os diferentes grupos que se opõem a Ortega?

Em 2018, as primeiras tentativas de articular uma mesa entre governo e representantes dos jovens que estavam nas universidades ocupadas foi muito arbitrária. Não era algo que representava quem estava nas ruas, e teve grande influência da alta hierarquia católica [relacionada à administração de algumas das maiores universidades do país]. A segunda mesa foi mais representativa dos empresários, a Igreja se apartou e só ficou o embaixador do Vaticano. O movimento como um todo foi espontâneo, é absurdo dizer que foi dirigido pela CIA – se houvesse uma condução, seja gringa ou nicaraguense, talvez não tivesse acabado nessa situação. Só que foi espontâneo, cada barricada tinha seu próprio comando e ninguém queria ser mandado pelo outro. Isso dificulta o processo de construção de uma contrapartida ao governo que se apresenta com força, porque há muitas desconfianças entre os partidos, além de trabalhos de infiltração do próprio Ortega, colocando gente nesses grupos para provocar brigas, trabalhando com trolls nas redes sociais para atacar críticos.

Até 2021 ainda havia toda uma discussão se a oposição deveria ou não se apresentar nas eleições sem garantias, com posições muito radicais de cada lado. Mas agora todos os principais líderes de oposição foram desterrados, e há expectativa de que talvez se possa construir um movimento antiditatorial que deixe de momentaneamente de lado as diferenças políticas. Os conservadores não querem saber de aborto, de diversidade sexual, de cuidado com o meio ambiente. Não querem ouvir questionamentos ao capitalismo. Mas hoje estamos tão brutalmente restringidos na liberdade que há uma bandeira comum de conseguir primeiro liberdade, para depois travar outras lutas. Seria preciso estudar um pouco o processo que levou ao fim da ditadura de Augusto Pinochet [ditador chileno entre 1973 e 1990, derrocado por um plebiscito organizado pelo próprio regime em 1988], para que em um determinado momento se possa conseguir nem que seja um plebiscito para decidir se Ortega vai ou não continuar.

Eu defendo que deveríamos trabalhar para agrupar os parecidos. A direita com a direita, a esquerda com setores de esquerda, e depois fazemos pontes antiditatoriais, com um programa mínimo que gire em torno da recuperação da liberdade e da democracia. Um só objetivo: tirar a ditadura, fazer com que ele se veja obrigado a permitir nosso regresso ao país, permitir que nos organizemos e participemos das eleições.

Que papel os países vizinhos podem ter nisso?

Deve haver uma maior participação do Sul. Há muita queixa da participação dos EUA. Nós temos culpa que os EUA digam que são contra Ortega, que Bolsonaro diga que é contra Ortega. O nosso problema não é que a direita diga essas coisas, que muitas vezes são só discurso sem ação, e sim que a esquerda não diga o suficiente. Se eles querem dizer, que digam. Mas por que a esquerda não tem sido mais enfática? Acredito que agora é um momento em que há possibilidades. Algo demonstrado pela conduta de Gabriel Boric [presidente do Chile], de personalidades como o ex-presidente Pepe Mujica [do Uruguai], de Gustavo Petro [presidente da Colômbia]. Precisamos ter mais protagonismo a partir do Sul, a partir da esquerda. Esse tema não é problema só da Nicarágua: ele afeta toda a região. O autoritarismo dá mau exemplo. Ortega copiou a “Lei de Ciberdelitos” da Rússia, que nós chamamos de “Lei Putin”, que abre margem para prender quem critica o governo nas redes sociais. Em seguida, o governo de El Salvador copiou essa lei igualzinha, quase com os pontos e vírgulas idênticos.

Baltodano e Lula (Acervo pessoal)

O autoritarismo serve bem aos autoritários de toda a região. Ortega se reelege indefinidamente, de forma inconstitucional, e nada acontece. Isso desprestigia a esquerda, porque ele se apresenta como se fosse de esquerda. O jovem da Nicarágua não quer mais ser de esquerda. O jovem acredita que o que Ortega faz é sandinismo, e começa a se dizer antissandinista. A postura de quem se reivindica de esquerda e sandinista se torna delicada, ainda mais porque Ortega é duplamente cruel com aqueles que nos originamos no sandinismo. É o caso de Hugo Torres, que fez a operação que tirou Ortega da prisão em 1974 e de outra grande operação que tirou 65 presos políticos em 1978. Ele é o único que participou de ambas. E morreu preso pelo próprio Ortega em fevereiro do ano passado. Entrou saudável, se alimentava bem, os companheiros de cela até diziam que aprenderam a fazer exercícios com ele. De repente, começa a adoecer, adoecer, até que é levado da prisão e não voltamos a saber nada sobre ele até que sai um comunicado desse tamanho [Mónica gesticula indicando um pequeno quadrado]: “A Procuradoria informa que o réu Hugo Torres morreu”. Nem sequer houve um comunicado do Exército, não fizeram nenhuma honra militar a ele, que era um general heroico da revolução.

Não é o único. Dora María Téllez [outra militante que, como Mónica, atingiu o posto de Comandante Guerrilheira na época da revolução] é mantida 22 meses presa em uma cela escura. Tamara Dávila, filha de uma combatente histórica na luta contra Somoza, é mantida em uma cela em que não podem entrar livros ou lápis para escrever. Ela tem uma filha de três anos e nunca a deixaram vê-la. Eu mesma estive presa na época de Somoza e nunca estive nessas condições. Eu também tinha um filho pequeno e deixavam ele que fosse na prisão. Como pode ser que alguém veja isso, um ato brutal, fascista, e tenha dúvidas?

Só posso aceitar se não há informação. Mas se você está informado e perdoa essas ações só porque Ortega diz que é anti-imperialista, me parece inaceitável. Ele não tem esse direito, como não tiveram Pol Pot nem Stalin. Os direitos humanos não podem estar submetidos a análises de caráter ideológico. Nem Pinochet, nem Stroessner, nem Somoza chegaram ao ponto de retirar a nacionalidade e apagar o registro civil das pessoas. Os documentos do meu filho não podem mais dizer que é filho de Julio López, meu marido, porque Julio não existe mais oficialmente. É uma situação absurda, intolerável, e não se pode olhar para o outro lado.

Já que estamos falando de comparações com outras ditaduras, eu gostaria que você comentasse um pouco mais sobre um grito de guerra que surgiu nos protestos em 2018 e continua sendo usado como uma forma de resumir o que se vive na Nicarágua: “Ortega, Somoza, são a mesma coisa”. É possível compará-los dessa forma?

Quando surgiu esse grito de guerra em 2018 fui entrevistada pela Deutsche Welle e disse que não gostava dele porque sou historiadora, além de viver eu analisei a brutalidade do regime de Somoza. E eu dizia: na época Ortega já vinha de 11 anos no governo, porque entrou em 2007. Somoza não matou 350 manifestantes nos seus primeiros 11 anos. Então não é possível comparar os 40 anos dos Somoza com uma década de Ortega, mas podemos deduzir: se nos primeiros 11 anos ele matou mais que Somoza, o que aconteceria se ele tivesse que enfrentar uma luta guerrilheira como a que nós travamos na época? Ortega seria tão ou mais genocida que Somoza. Nos primeiros 11 anos, Somoza não foi tão criminoso a ponto de ordenar que disparasse na cabeça dos manifestantes como Ortega, algo que está demonstrado inclusive por balística, que foram disparos de francoatiradores com o propósito de atemorizar e desmobilizar os manifestantes.

A censura da imprensa, por exemplo. No jornal La Prensa, Pedro Joaquín Chamorro [morto no início de 1978, era marido da futura presidenta Violeta Chamorro] dizia barbaridades contra Somoza. Fazia piada com sua voz, denunciava a corrupção. E Somoza só fechou La Prensa quando decretou estado de sítio, já na insurreição final deixou que se bombardeasse o jornal em 1979. Agora, com uma oposição muito menos violenta, Ortega já fechou tudo, invadiu o jornal, capturou o diretor e deixou 22 meses preso. É como fez Pinochet fechando os meios de esquerda. Alguém vai dizer “mas La Prensa é de direita”. Que democracia é essa? Por que Ortega vai fazer isso quando além de tudo é dono de todos os canais de televisão?

Quando o próprio Daniel Ortega é processado na ditadura de Somoza, mil estudantes saem nas ruas protestando pela liberdade de Ortega. O julgamento era público, os advogados se convertiam em personalidades pela defesa brilhante que faziam dos presos sandinistas. Somoza não conseguia controlar o movimento estudantil, teve que enfrentar organizações que foram controladas primeiro pelo socialismo cristão e depois pelo sandinismo. Agora não existe movimento estudantil. Os estudantes que ousaram se levantar e ocupar universidades, alguns foram expulsos, tiveram os registros apagados e precisaram recomeçar os cursos do zero. Na época de Somoza nós nos organizamos nos bairros, fazíamos manifestações, e agora isso não é possível. Em 1959, Somoza mandou atirar contra uma manifestação estudantil e matou quatro – e eu posso dizer de memória o nome de todos eles porque anualmente fazíamos protestos recordando a data, gritando seus nomes. Agora são mais de 300 mortos e não podemos gritar.

Os massacres principais que sofremos com Somoza foram já em meio a processos de insurreição. Somoza jogou bombas sobre as cidades, foram massacres horríveis. Ortega já fez o que fez sem insurreição, sem luta armada. O que faria se tivesse um levante? Seria pior.

Também há uma comparação possível na questão de usar o poder para estabelecer uma espécie de dinastia familiar, não?

Essa é outra coisa. Nenhum dos Somoza colocou sua esposa como presidenta. Aliás, Ortega primeiro a chamou [a primeira-dama Rosario Murillo] de “chefa de comunicações”. Pode buscar nos veículos de imprensa deles, praticamente não se acha nome de ministros. Tudo é ela que opina. Só ela pode falar de saúde, de educação, se amanhã vai chover. É a única porta-voz. Agora ela é vice-presidenta, mas o próprio Ortega prefere dizer que é “copresidenta”. Meu filho, que é cientista político, diz que temos uma ditadura sultânica. Isso é um traço parecido que tem com os Somoza, mas vale ressaltar: nenhum Somoza se reelegeu. Havia um certo respeito a esse princípio, a dar uma aparência de que não governavam por períodos consecutivos, então botaram presidentes-fantoche. Ortega nem isso faz.

Em 1990, quando perdemos as eleições, começa algum debate sobre a lei do Exército e buscamos deixar fortalecida sua institucionalidade com um período de comando de cinco anos no máximo. Tudo isso mudou com Ortega quando voltou ao poder. Agora o chefe do Exército pode seguir no cargo, se reeleger como o próprio Daniel Ortega, e é absolutamente subordinado a ele, porque todos os seus privilégios e toda a sua continuidade é garantida por ele. A mesma coisa o chefe da polícia: uma filha dele é casada com um filho de Ortega, ou seja, são família. Isso é outro traço semelhante aos de Somoza, com uma família controlando os aparatos repressivos, que na época era o que faziam com a Guarda Nacional.

Talvez [na época da guerrilha] pensássemos que ele era diferente. Mas em 1998 a filha de Rosario Murillo, de seu primeiro casamento, denunciou que Daniel Ortega a tinha estuprado aos 15 anos, e que havia começado a abusar dela quando ela tinha 11. E eu faço as contas e percebo que isso era em 1978, quando o país estava se levantando e enfrentando a Guarda – e ele estava na Costa Rica no exílio. Ele não dirigiu nada, ele chegou ao poder por circunstâncias determinadas das forças internas do sandinismo que depois montaram uma Junta de Governo. Os dirigentes mais destacados, lamentavelmente, acabaram mortos. Então essa menina estava sendo abusada enquanto na Nicarágua estávamos lutando, caindo presos, e morrendo. E ele, aproveitando-se do exílio e da cumplicidade da mãe, da Rosario Murillo, que agora manda na Nicarágua, fez isso. Isso mostra que não o conhecíamos como pensávamos conhecer. Talvez ele sempre tenha tido essas condutas monstruosas, que agora fazem construir uma liderança quase messiânica, como uma seita suicida.

Para finalizar, queria entender o que a senhora vislumbra para o futuro. Em um cenário em que haja reabertura democrática nos próximos anos e seja possível voltar para a Nicarágua, você ainda tem alguma ambição de regressar à política?

Não. Veja: eu vivia em um lugar mágico, em uma lagoa em uma cratera, um vulcão que entrou em erupção há 18 mil anos. Dizem que o Discovery Channel até incluiu como um dos 10 lugares com as águas mais deliciosas. Eu vivia ali, com minha biblioteca, escrevendo, saía para dar palestras. Sempre trabalhando o tema histórico com os jovens, que é algo que me encanta. Eu fico muito mal que a história do sandinismo acabe reduzida a essa barbaridade que acontece agora, porque obviamente a direita tenta dizer que “isso é o sandinismo de verdade, e é assim desde os anos 80”. Então, se não seguirmos trabalhando a memória histórica, colocando no lugar correto o quanto foi bonito o sandinismo, toda uma geração fazendo coisas, mesmo que tenha havido defeitos, isso vai se perder.

Eu me sinto responsável por fazer esse trabalho e por nenhum motivo me ocorre voltar à política eleitoral, à política partidária. Não estou militando em nenhum partido, prefiro o tema dos movimentos sociais. Acredito que uma das coisas mais importantes é construir organizações que reivindiquem as bandeiras de cada setor, como os campesinos. Gostaria disso: trabalhar com os movimentos sociais, voltar a reconstruir o tecido social que Daniel Ortega pulverizou e destruiu completamente. Essa é minha primeira aspiração. E, depois, que o resto da vida de meus filhos e minhas netas e netas sejam de outra forma, sob outras condições. Enquanto eu tiver força e energia, nem que seja para falar como faço agora, vou seguir fazendo. É onde tenho depositados meus sonhos e minhas esperanças.

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