Juremir Machado da Silva

A sombra de Berlusconi para Vincenzo Susca

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A sombra de Berlusconi para Vincenzo Susca Silvio Berlusconi (Foto: paz.ca)

Professor de sociologia do imaginário e pesquisador na Universidade Paul-Valéry, em Montpellier, Vincenzo Susca é autor do livro À sombra de Berlusconi, publicado em Paris no ano de 2006. Os seus mais recentes livros em português, pela Sulina, são Afinidades conectivas (2019) e Aurora digital (2021), com Claudia Attimonelli. Neste texto exclusivo para o Matinal, Susca revisita a trajetória do político italiano falecido neste mês de junho. Cru e preciso.

Ele parecia imortal.

Quando escolheu, em 1993, ingressar na vida política italiana, adotou uma metáfora poderosa, declarando-se “ungido pelo Senhor” depois de ter “bebido o cálice amargo da política”.

Descendo de uma espécie de paraíso, estava finalmente pronto para “entrar em campo”, como no “campo de jogo” do esporte nacional italiano, o futebol.

Apesar de suas esperanças e das declarações coniventes de amigos médicos sobre sua imortalidade, Silvio Berlusconi morreu, aos 86 anos, em 12 de junho de 2023, após uma nova internação no hospital San Raffaele, em Milão, por causa de uma leucemia.

Figura controvertida, capaz de sintetizar e amplificar todas as contradições democráticas, culturais e econômicas da Itália, o “Cavaliere” foi um inovador paradoxal para seu país e além.

Irrompeu no sistema político em meio à mais aguda crise contemporânea, quando o combate à corrupção acabava de varrer a maior parte da classe dominante. Até então, na chamada Primeira República, iniciada após a Segunda Guerra Mundial, o país era governado por uma grande coalizão reunindo figuras políticas tão diversas, quanto socialistas, católicos e liberais, de uma forma confusa caracterizada por muitos acordos e sólida estabilidade da elite, apesar da instabilidade governamental permanente.

Berlusconi foi o primeiro a propor a polarização ao “Belpaese”, dividindo o sistema entre centro-direita e centro-esquerda, ainda que sempre chamasse seus adversários de “os comunistas”, mesmo que, faz tempo, não haja mais vestígios deles no país.

Acima de tudo, Berlusconi conseguiu legitimar e representar, ainda que como comicidade e simulacro, aqueles consumidores e espectadores que o eixo de poder católico e comunista italiano havia mantido à margem do sistema, cujos desvios condenava. Com ele, a linguagem política e o sistema institucional mudam radicalmente. Ele encarnava sobretudo um órgão midiático que falava, conforme Alberto Abruzzese, Tullio de Mauro e Umberto Eco, a primeira e verdadeira língua nacional: a palavra da televisão e em particular da televisão comercial, da qual seria o senhor absoluto por tantas décadas.

Antecipando em cerca de 25 anos às façanhas de Donald Trump, ele fez a transição da política do espetáculo para a politização do espetáculo, ou seja, de um sistema em que a mídia era arena e caixa de ressonância para os partidos políticos tradicionais a outro no qual a mídia se tornou ator político autônomo.

Sedutor habilidoso, líder histriônico, empresário ousado e bem-sucedido, capaz de farejar bons negócios, interceptar e rentabilizar sonhos coletivos, transpôs a linguagem empresarial, da mídia e do futebol para a política, a ponto de ser vítima de sua própria farsa com uma série de escândalos embaraçosos envolvendo orgias, prostitutas e sonegação de impostos.

Apesar de inúmeros abusos de poder, uma vida sexual exorbitante que ultrapassa os limites do código penal, amizades duvidosas, quando não diretamente ligadas à máfia, o ex-primeiro-ministro foi alvo de inúmeros processos, dos quais saiu quase sempre ileso.

Se o seu corpo físico deixou a Terra, o seu corpo político certamente ainda está presente graças às suas ramificações legítimas e ilegítimas. O movimento populista do ex-humorista Beppe Grillo, a Liga xenófoba de Matteo Salvini e a atual primeira-ministra Giorgia Meloni, líder do movimento pós-fascista “Fratelli d’Italia”, representam, em muitos aspectos, as sequelas do berlusconismo.

Não é por acaso que os esqueletos no armário do gabinete do líder lombardo não impediram o atual governo de decretar luto nacional por sua morte. Seu funeral assumiu na mídia uma importância capital para a Itália. Junto com parte do país, da centro direita, mas também a extrema direita e parte da centro esquerda, toda a televisão, emanação direta do seu corpo, está de luto.

A “paz” de um político, desde o assassinato de Benito Mussolini, em 28 de abril de 1945, nunca foi tão inseparável da paz da Itália. De fato, é urgente que o país se despeça verdadeiramente de Silvio Berlusconi para se libertar de seu espectro político. Por agora, a operação está longe de terminar e o país nunca pareceu tão guiado pelas longas sombras do seu passado.

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