Juremir Machado da Silva

Bela adormecida cancelada

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Bela adormecida cancelada Foto: Gülfer ERGİN/Unsplash

Tribunais revolucionários morais nunca deram bons resultados. Na revolução francesa de 1789 o guilhotinador de um dia era o guilhotinado do seguinte. Vai uma afirmação trepidante: a vida é complexa. Vale deixar uma rua se chamar Adolf Hitler para não apagar o passado? Não. Vale mudar palavras de uma obra literária consagrada por não ser politicamente correta? Não. No primeiro caso, a mudança é fundamental. No segundo, fundamental é, ao mesmo tempo, a preservação do texto original e a crítica a preconceitos do autor e da época. José de Alencar era racista e escravista. Cancele-se a sua obra? Não. Cabe contar também a vida do escritor e sua militância, destacar que chegou a votar contra a lei do Ventre Livre.

Nos Estados Unidos, nas terras sob o comando do governador republicano Ron DeSantis, onde se abriga a Direita Miami brasileira, uma edição ilustrada de A bela adormecida foi proibida de figurar nas escolas. Motivo? As nádegas da rainha aparecem de fora numa banheira. Por que mesmo crianças não poderiam ver a bunda da rainha? Editoras estão mudando palavras de obras clássicas por razões econômicas: medo de não vender em tempos de pais hipersensíveis a termos como gordo, mau, feio. Os livros de Roald Dahl têm sido reescritos na Inglaterra pelo politicamente correto radicalizado. Deu a louca no mundo? Será esta pergunta odiosa?

Consulto a minha edição mais lida de Otelo, obra-prima de certo Shakespeare, o mais famoso escritor de todos os tempos, salvo, quem sabe, Homero, cuja biografia permanece desconhecida, podendo ter sido homem, mulher ou ficção. Otelo tem passagens assim: “vosso genro é mais belo do que negro”; “agora mesmo, neste momento, neste momento mesmo, um velho bode negro está cobrindo uma ovelha branca. De pé! De pé! Despertai ao som de um sino os cidadãos que estão roncando, ou, caso contrário, o diabo vai fazer de vós um avô”; “de um homem, como a de um índio vil, atirou longe uma pérola mais preciosa do que toda a sua tribo […] Contai isto e dizei, além do mais, que, certa vez, em Alepo, vendo um turco, um ímpio de turbante, batendo num veneziano e insultando o Estado, agarrei pelo pescoço o cão circunciso e feri-o assim (apunhala-se)”.

Razões opostas podem produzir resultados semelhantes. Há no ar do tempo uma determinação muito legítima: combater os preconceitos, saldar dívidas históricas, ampliar os horizontes epistemológicos, romper com o falso universalismo europeu, enfrentar as narrativas coloniais, propor relações sem a toxicidade dos modelos secularmente dominantes, tornar pluralistas instituições dominadas por homens brancos heterossexuais sob o álibi do mérito e das escolhas espontâneas por suposta competência.

Só não é possível proibir que a rainha exiba as nádegas em A bela adormecida ou cancelar Otelo. Alguém se atreveria a reescrever Shakespeare? Ou a mandá-lo para a guilhotina?

Eis a questão.

Lula perdeu a oportunidade de indicar uma jurista negra para o STF.

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