Juremir Machado da Silva

Um médico contra o obscurantismo

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Um médico contra o obscurantismo

Nilson Luiz May acostumou-se a exercer dois ofícios ao mesmo tempo: médico e escritor. Presidente da Unimed Federação RS, é autor de livros marcantes como “Céus de Pindorama” e “Bosque da solidão”. Agora, em “O leão da Calábria”, publicado pela Scriptum, ele mescla de vez literatura e medicina na história, “inspirada em fatos reais”, do doutor Michele De Patta, vindo da Calábria, em 1920, com a família, para tentar uma vida melhor no Rio Grande do Sul. May pratica o que a literatura exige de mais rigoroso: contar com clareza e interesse uma boa e envolvente história.

Michelle De Patta instalou-se em Anta Gorda, onde construiu o Hospital São Carlos. Com conhecimentos e métodos modernos, passou a praticar uma medicina que, nos tempos conturbados das disputas entre chimangos e maragatos, logo desagradou aos poderosos locais: o chefe político do lugar, o padre e um curandeiro acostumado a lucrar com o desamparo da população. O que se vê na narrativa de May é o desfile das fraquezas, covardias e medos que assolam a humanidade. Num microcosmo, o macrocosmo aparece como num holograma. Na contramão, a coragem de um médico humanista que realmente existiu e a generosidade de um professor anarquista, como muitos imigrantes italianos então, criado pelo ficcionista, disposto a arriscar a vida em nome do conhecimento, da verdade e do interesse comum. O resultado só podia ser um belo livro.

Num mesmo pacote, uma história de amor, de utopia e de realização. Na época, necessitando de reforço, o Brasil permitia que médicos estrangeiros pudessem trabalhar sem revalidação do diploma. Os poderes locais exerciam-se explorando a ignorância das pessoas. Tudo o que fosse moderno e ameaçasse os poderosos de plantão tendia a ser cancelado – o termo obviamente ainda não era aplicado com esse sentido – como comunista. A sugestiva e bem narrada história resgatada por Nilson May fez pensar num título clássico de Erich Maria Remarque: “Nada de novo no front”. Os erros se repetem. Os mesmos espantalhos ressurgem. A história reaparece como farsa, tragédia, tragicomédia ou simplesmente estupidez. O bom escritor pega toda essa matéria bruta e faz dela um espelho.

Li “O leão da Calábria” em duas sentadas, entre sábado e domingo. Queria ver os jogos da Copa do Mundo, mas o livro me chamava de volta. Queria saber como acabaria o confronto entre o médico e seus inimigos, com o hospital cercado pelos fanáticos e, finalmente, incendiado. May conta essa história com tantos detalhes que a gente se vê da travessia do Atlântico, na segunda classe do navio Tomaso Di Savoia, ao terrível momento do enfrentamento armado com os capangas do intendente local. Impossível não ficar encantado com a valentia do Dr. Michele, improvável não querer saber mais sobre a sua vida no Brasil, até morrer em 1946, em Joaçaba, sem nunca ter voltado à sua amada Itália natal.

Num tempo de tantos relatos umbilicais, artificiais, sem grandeza mesmo, “O leão da Calábria” queima fronteiras e, para além de um romance histórico ou de uma história romanceada, captura o leitor com sua limpidez. Tudo nele transpira verdade, verossimilhança e autenticidade.

A sessão de autógrafos de Nilson May acontece hoje, a partir das 18h30, na Casa da Memória Unimed RS (rua Santa Terezinha, 263).

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