Juremir Machado da Silva

Uma vida em Copas

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Uma vida em Copas Foto: Fifa

Houve uma época em que eu media a minha vida em Copas do Mundo. Nasci em 1962. Era jovem demais para ver o Brasil ganhar no Chile. Também era indiferente ao futebol em 1966, quando o Brasil passou vergonha na Inglaterra. A minha vida consciente começa com a Copa do Mundo de 1970. Dali para cá me lembro de muita coisa. Quando o Brasil levou o tri, no México, eu estava em Palomas escutando a Rádio Guaíba. Ali decidi ser jornalista, sem saber que era de jornalismo que se tratava. Em 1974, torci por Valdomiro, ponteiro direito do Inter, na Copa da Alemanha. Em 1978, adolescente de cabelos compridos e revoltas longas, odiei a conspiração que barrou o acesso do Brasil ao título e consagrou a Argentina dos ditadores repugnantes e ladrões de tudo.

Em 1982, aos vinte anos de idade, estudante em Porto Alegre, sem dinheiro no bolso nem juízo na cabeça, dividi um ovo com um primo, medida na régua, e voltei a Santana do Livramento, onde vi a Itália acabar com a sonho da grande seleção de Falcão e cia. Em 1986, vi Zico perder pênalti e fui namorar. Em 1990, casado, assisti ao desastre brasileiro sem maiores efusões. Em 1994, comemorei o tetra, em Paris, na casa de meu amigo André Lemos, carioca radicado na Bahia. Nunca torci tanto. Nem em 1970. Eu era fã de Romário. Diziam que, na vida, eu representava o “estilo Dunga”. Em 1998, mais uma vez na França, não me dei o trabalho de ir ver algum treino do Brasil. Coloquei, porém, bandeira do Brasil na janela e enfrentei a zombaria de um argentino do nosso beco (Impasse du Mont-Tonnerre), que trovejou sua ironia por uns seis meses depois do fiasco brasileiro na final contra os franceses. Em 2002, torci por Felipão e Ronaldinho Fenômeno, que eu havia entrevistado na Holanda, quando ele tinha 18 anos e, segundo seu treinador, só pensava em transar com a namorada, reprimenda que me pediu para traduzir ao jovem brasileiro, com quem ele não tinha língua em comum. Em 2006, andei desinteressado contando estrelas e sonhos.

Em 2010, estava ocupado tentando dar um salto na vida. Foi quando criei o Esfera Pública, na Guaíba, ao lado de Taline Oppitz. Em 2014, não fui a um só jogo da Copa no Brasil. O único jogo de Copa que assisti em estádio foi Brasil e Marrocos, em Nantes, na França, perto da barulhenta turma do Chico Buarque, com quem Cláudia não perdeu a oportunidade de se fazer fotografar toda de verde e amarelo, sem que isso indicasse qualquer preferência ideológica pela direita. Em 2018, ganhei o bolão de resultados da equipe de esportes da Guaíba.

Estava afiado.

E agora? Copa do Mundo numa ditadura. O Catar não orgulha ninguém em matéria de direitos humanos ou de posições iluminista. Os estádios foram construídos com trabalho semiescravo. Mulheres são objetos sem vontade própria. E por aí vai. Tudo isso foi jogado para baixo de um imenso tapete catari pelos interesses econômicos da Fifa. Seleções europeias estão desafiando o obscurantismo catari em aviões com as cores do arco-íris. A França entrará em campo com o arco-íris no uniforme. A camisa amarela brasileira virou símbolo da extrema direita. Neymar, nosso melhor jogador, talvez homenageie Jair Bolsonaro ao marcar gols. Vou torcer assim mesmo? Vou. Como dizem certos políticos, será um posicionamento crítico. Torcida com ressalvas. Com a bola rolando, claro, tudo pode mudar. Tomara.

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