Nanni Rios, colunista
Nanni Rios

A ilusão da casa

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A ilusão da casa Ilustração: Amanda Dias / Companhia das Letras

Um dia, bem no início do nosso relacionamento, Luiza me perguntou como que eu sabia que ia ser feliz “assim” – e por “assim” ela se referia à proposta não-monogâmica que eu tentava implementar na minha vida e que àquela altura já era uma condição. Grosso modo: era pegar ou largar. Para a minha sorte, ela pegou. Mas eu confesso que eu andava à deriva, tinha perdido a bússola e não sabia muito bem responder àquilo. Então eu disse: eu não sei se vou ser feliz “assim”, só sei que de outros jeitos eu já não fui.

Eu vinha de uma sequência de 10 anos de relacionamentos complicados, cada um a seu modo, e sobre os quais eu nem vou entrar em detalhes aqui, mas eles tinham algo em comum: o modelo monogâmico de relação, com o pacote completo de traições, romantização de sofrimentos e privações de desejo. E eu não me refiro aqui só ao eventual trânsito de outras pessoas nas dinâmicas dos casais convencionais, mas sim aos acordos, pactos e expectativas quebrados. Eu guardava muitas lembranças boas, claro. Mas também amargava frustrações incontornáveis e, sobretudo, um retrogosto de insatisfação com a versão de mim mesma que eu tinha sido naqueles relacionamentos.

Você deve estar pensando que não há nenhuma novidade aí, pois qualquer relação tem altos e baixos. Mas tem uma coisa: eu sou obstinada em ser feliz. E por “obstinada”, algumas pessoas entendem como teimosa mesmo. Vá lá. Mas eu me sinto confortável nesse papel de quem frita os miolos e varia batimentos cardíacos em busca de um jeito melhor de fazer e sentir as coisas. Vale mencionar também quase uma década de análise no lombo. E seguimos.

*

Artur é um ex-estudante de artes visuais que faz drag queen e trabalha no café de uma livraria. Ele namora Caíque e os dois moram juntos na Cidade Baixa. Muitos anos atrás, Artur ficava com Eric, que fazia cursinho para Medicina. Até que Eric conheceu Antônio e deu um ghosting no Artur. Eles nunca mais se falaram.

Agora o Eric apareceu do nada chamando Artur pra sair: “Sdd de transar contigo”. As fotos de casal com Antonio continuavam lá, o relacionamento era aberto. Caíque tava no trabalho e o combinado era não receber ninguém em casa. Tirando isso, ele iria entender.

Quando Antônio soube do encontro, alguns acordos com Eric precisaram ser refeitos. Os quatro até se conheceram: Antônio e Artur se deram muito bem, inclusive sexualmente; Caíque achou Eric um gatinho.

Esse é o elenco de Quarto aberto, o primeiro romance de Tobias Carvalho, que eu li num só fôlego na semana passada. Ao final das 245 páginas, eu sorria. Escrevi para o Tobias (sou dessas) dizendo que “nenhum trecho que li ou ouvi por aí é capaz de representar a história linda que tu escreveu”. Mas mesmo assim eu vou tentar.

Acho que a sinopse que eu tentei fazer aí em cima não me convenceria a pegar o livro pra ler, porque fica parecendo só uma história banal de pegação entre garotos jovens. Mas o que aparece no livro é muito mais complexo e importante: são garotos LGBTs tentando encontrar o seu jeito de se relacionar, um jeito que os contemple, que os faça felizes e satisfeitos com a versão de si que apresentam uns aos outros e que os torne livres das convenções sociais (capitalistas e patriarcais) que não foram feitas pra deixar ninguém feliz. Por serem bem jovens, na faixa dos 20 e poucos anos, as possibilidades são infinitas e a coragem de experimentar é invejável.

“É o que te ensinam desde pequeno, né. Que só existia um amor verdadeiro. E aí tu não vive outros.”

Inseguranças, nóias, ansiedades, medo de perder… quem nunca? É algo comum a todos os relacionamentos, fechados ou abertos. Mas entre Artur e Caíque, cujo quarto fica com a porta permanentemente aberta para a gente, tudo se resolve a partir da intimidade e do afeto. 

“Talvez a gente ainda se frustrasse e se machucasse, e então a gente ia ter que aprender uma coisa nova que nos fizesse mudar – e depois a gente ia se frustrar de novo e reajustar tudo. Essa ideia me agradou.”

Tem um clichê na literatura LGBT que são os finais infelizes, as vidas desgraçadas e o foco na dor, experiências que fazem parte, sim, do cotidiano de muitas LGBTs, mas não representam todas as nossas vivências. Por muito tempo, não se falou sobre a potência que existe na margem, no desajuste, na diferença. O fato da gente não ter um modelo para seguir nos deixa inicialmente um pouco perdidos, à deriva, mas também nos põe livres para construir algo totalmente novo e único, se assim desejarmos.

“Era isso: o prazer de ter alguma coisa, já que antes a gente não tinha nada.”

Por isso é um alívio quando Tobias nos oferece uma história que ignora até certa medida o mundo lá fora, nos poupando do cansaço de revisitar a realidade, para nos mostrar as intimidades, em maior ou menor grau, desses quatro personagens. Na narrativa, eles não estão todos no mesmo campo de visão e essa habilidade estética é um grande destaque do livro.

Há diferenças interessantes de foco e profundidade de campo nessa fotografia: Artur é o narrador da história, o que mais se desvela diante da gente, com contornos mais nítidos. Caíque é visto pela lente do Artur, ainda muito próximo. Já Antônio e Eric estão no outro quarto e algumas coisas ficam um pouco desfocadas, em aberto mesmo, como se Tobias atribuísse a esses personagens características mais fluidas, nos permitindo complementá-los de acordo com a nossa bagagem e interesse, com bastante espaço para a fantasia.

*

Dia desses, eu li um post da poeta Ana Martins Marques sobre a morte recente do seu tio Antônio Martins e as lembranças que ficaram guardadas na casa dele. Entre elas, um livro datilografado e encadernado manualmente com os poemas que Ana escreveu quando era criança. Ela conta:

“São dois volumes de poemas, uns até bacanas, uns constrangedoramente ruins. Mas o que me comove é esse gesto de levar a sério esses poemas de criança, essa aposta, isso que eu penso agora que é uma espécie de legado: levar a sério o seu desejo, o seu capricho, a sua vocação, que seja, como ele fez com si próprio, mesmo em meio a muitas adversidades e asperezas.”

Fiquei pensando: “Levar a sério o seu desejo, o seu capricho, (…) mesmo em meio a muitas adversidades e asperezas”. Acho que é tipo isso.

*

Eu namoro Luiza, que também se relaciona com M., que é casada com L., que não dança quadrilha. E também namoro Mayara, que namora R., que não namora (mais) ninguém (no momento).

Eventualmente eu saio com G. e P., que namoram entre si. Eu e Mayara temos uma história com C. e quando encontro A. é sempre uma alegria. Tenho saudades de G., que fechou a relação com H. e me pediu um tempo, mas isso já é outra história.

*

Tem um livro, uma espécie de clássico cult LGBT, que é o queridinho de 10 entre 10 viados ou sapatas com mais de 35 anos que eu conheço. Essa estatística não tem qualquer compromisso com a exatidão matemática, obviamente, e nem quer excluir os não-LGBTs que porventura também gostem do livro, mas esse exagero passional já é uma primeira informação sobre ele.

Uma casa no fim do mundo, de Michael Cunningham, conta a história de três personagens – Clare, Jonathan e Bobby – que resolvem comprar uma casa numa cidadezinha perto do mar para criarem juntos a pequena Rebecca. Agora eu vou explicar melhor o que essa história tem de especial e já peço, de antemão, perdão pelos spoilers.

Jonathan e Bobby eram amigos de infância na pequena cidade onde nasceram. Eram inseparáveis, quase irmãos, mas se afastaram quando Jonathan resolveu ir para Nova York fazer faculdade. Um clássico: o garoto gay que foge da sua pequena cidade natal para poder ser quem é de verdade num outro lugar, longe das suas referências primárias que não lhe contemplam. Lá ele conhece Clare, uma mulher onze anos mais velha, que se torna sua melhor amiga e roommate. É Jonathan quem conta: 

“Éramos meio amantes. Juntos ocupamos a clara esfera superior do amor, onde as pessoas se deliciam com a alteridade, têm carinho pelas esquisitices do parceiro, e lhe querem bem. Como não éramos amantes no sentido carnal, não tínhamos utilidade para os pequenos assassinatos. Clare e eu contávamos um ao outro nossos piores segredos e admitimos nossos medos mais tolos. Jantávamos e fazíamos compras juntos, avaliamos as qualidades dos homens que passavam na rua. Em retrospecto, creio que éramos como as duas irmãs das velhas histórias – as histórias em que a irmã mais nova não pode se casar até que alguém queira a mais velha, menos atraente. No nosso caso, porém, éramos as duas irmãs ao mesmo tempo. Compartilhávamos uma vida de roupas, fofocas e auto-exame. Esperávamos sem nenhuma urgência especial, para ver se alguém iria nos querer para aquele outro tipo de amor, mais aterrorizante.”

Diferente do Quarto aberto, em que há apenas um narrador e os outros personagens são retratados pela visão dele, o romance de Cunningham é polifônico: cada capítulo é contado por um dos personagens – e aqui eu acrescento Alice, a mãe de Jonathan, que também aparece vez ou outra como narradora. Uma mesma história ganha, por vezes, múltiplas versões.

Depois de perder toda a sua família e passar um tempo morando com Alice, ocupando o lugar de filho na casa depois que Jonathan foi embora, Bobby decide ir morar em Nova York e pede abrigo ao amigo, que inicialmente resiste, mas depois passa a gostar daquela reaproximação. Jonathan foi apaixonado por Bobby na infância. Bobby permite que Jonathan se aproxime, isso nunca foi um problema, mas também fica interessado em Clare, que corresponde. O que seria uma hospedagem temporária passa a ser um relacionamento a três, em que Jonathan continua saindo com outros caras, entre eles o belíssimo Erich, que parece uma presença banal quando chega na história, mas acaba ganhando uma enorme relevância mais a frente.

Clare engravida e decide dar à luz. Os rapazes ficam animados com a ideia de ter um bebê e o plano de ir morar perto do mar começa a ser realizado. A pequena Rebecca nasce numa casa cheia de amor e tudo corre bem, até que Clare decide mudar o rumo.

Muitas coisas acontecem nos meandros dessa história, entre elas o surgimento da aids (o livro é de 1990 e chegou ao Brasil em 1994). Erich reaparece depois de muito tempo para contar a Jonathan que está infectado. Sem ter para onde ir, depois de ser abandonado por todos, ele ganha uma nova família e passa a viver sob os cuidados de Bobby, Clare e Jonathan na casa do fim do mundo. E aqui eu vou parar com os spoilers.

Bom, é bastante informação. São 350 páginas e nenhum trecho ou resumo é capaz de dar conta da história linda que Cunningham escreveu. Mas o que eu quero dizer aqui é que acho comovente a naturalidade com que a relação a três se dá, sobretudo no momento em que uma criança entra na história.

Acho que não dá pra dizer que Uma casa no fim do mundo é um livro feliz. Ele tem uma melancolia onipresente, mas também não é triste ou catastrófico. Sinto que é, sobretudo, um livro sincero e honesto, que abre mão do clichê de retratar personagens “desajustadas” sempre à luz da norma.

É também sobre a possibilidade da gente encontrar o nosso lugar no mundo, ainda que esse caminho não venha pronto ou previamente desenhado e que ninguém nos alerte sobre o quão trabalhosa e igualmente prazerosa pode ser a escolha de ser quem se é.

*

No romance de Tobias, tem um momento que Artur resolve levar as histórias dos dois casais para fora do quarto. Durante uma apresentação in drag, ele pega o microfone e resolve que naquela noite ele não vai dublar ou emprestar corpo à história de alguém, como geralmente acontecia. Seu número seria contar a história real de como ele e o namorado se envolveram com outro casal, arrancando aplausos, risos e muita emoção do público presente no bar Workroom. Ele conta tudo e não poupa nem os nomes! 

A apresentação faz um sucesso danado, alguém filma e posta numa rede social. O vídeo viraliza e as vidas dos quatro rapazes são impactadas diretamente. Eles ficam com medo de serem julgados por estarem vivendo seus relacionamentos de forma não convencional. 

Karma, a drag de Artur, ganha milhares de novos seguidores nas redes. O tio de Artur, que mora em Curitiba, fica sabendo do babado e liga para investigar se está tudo bem. Eric teme que sua família descubra que Antônio – o namorado “padrãozinho” que o pai preconceituoso até aceita – na verdade não é tão padrão assim. E Antônio, que estava no bar quando Karma começa a contar a história, paga a conta imediatamente e vai embora, puto da vida.

Mas o que acontece de verdade é que, passado o susto, todos eles começam a se sentir bem e, sobretudo, mais confiantes pela relação finalmente ter saído do quarto, algo como sair do armário pela segunda vez.

É mais ou menos o que eu tô fazendo aqui.

*

Depois de colocar Quarto aberto e Uma casa no fim do mundo para conversarem entre si, fui passar um café antes de revisar esse texto e, no caminho, me lembrei de outra rima: Na casa dos sonhos, de Carmen Maria Machado, uma narrativa memorialística comovente e esteticamente genial sobre relacionamentos abusivos entre pessoas queer, um tema tabu, pouquíssimo abordado até mesmo dentro da comunidade. 

É impressionante a ambiguidade da casa e seus cômodos, como o quarto, o espaço onde a intimidade acontece, a dor e a delícia da existência. Mas isso fica para uma próxima coluna.

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